quinta-feira, novembro 30, 2006

A ROSA AZUL - HUMBERTO DE CAMPOS

foi meu pai quem falou: - tem um texto que lembrei de ter gostado, qndo era criança, chama " A Rosa Azul ", parece um trecho da Clarice Lispector : eu não! - eu quero uma verdade inventada!


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A ROSA AZUL

4 de janeiro

O comendador Luiz de Faria acabava de fechar os olhos à velha marquesa de São Justino, adoçando-lhe o momento da morte com a noticia alvissareira e mentirosa da completa regeneração do seu neto, o estudante Guilherme de Araújo, quando o encontrei à porta da casa funerária, à espera do seu automóvel. Abalado, ainda, pela emoção daquele instante, em que tivera de lançar mão de uma falsidade para perfumar o último sopro de uma vida de virtudes e sofrimentos, o antigo par do reino português aceitou um lugar no meu "taxi", e confessou-me, em viagem:

- A mentira, meu amigo, é, às vezes, uma necessidade. Aquela de que me socorri há meia hora, para suavizar a morte de uma santa, de uma senhora cuja maior esperança consistia no futuro de um neto que se desgarrara do lar, era tão necessária como a do prior da Cartuxa para alegrar a agonia daquele célebre monge do Bussaco.

Eu olhei, interrogativamente, o meu companheiro de viagem, e ele, percebendo a ignorância, indagou, com admiração:

- Não conhece, então, a lenda da rosa azul?

À minha afirmativa, que lhe pareceu estranha, o comendador apoiou as mãos robustas no castão de ouro da bengala, e contou:

- No Mosteiro da Cartuxa, no Bussaco, em Portugal, vivia, em séculos que já se foram, um piedoso e santo monge, cuja vida se consumia, inteira, entre a oração e as rosas. Jardineiro da alma e das flores, passava ele as manhãs de joelhos, no silencio da nave, aos pés de um Cristo crucificado, e as tardes, no pequeno jardim da ordem, curvado diante das roseiras, que ele próprio plantava e regava.

O comendador interrompeu um momento a narrativa, recostou-se na almofada, e continuou:

A sua paciência de jardineiro era absorvida, entretanto, por uma idéia, que era um sonho: encontrar a rosa azul das legendas do Oriente, de que tivera noticia, uma noite, ao ler os poemas latinos dos velhos monges medievais. Para isso, casava ele as sementes, os brotos, fundia os enxertos, combinando as terras, com que as cobria, e as águas, com que as regava, esperando, ansioso, o aparecimento, no topo da haste, do sonhado botão azul! Ao fim de setenta anos de experiências e sonhos, em que se lhe misturavam na imaginação as chagas vermelhas de Cristo e as manchas celestes da sua rosa encantada, surgiu, afinal, no coroamento de um galho de roseira, um botão azul, como o céu. Centenário e curvado, o velhinho não resistiu à emoção; adoeceu, e, conduzido à cela, ajoelhou-se diante do Crucificado, pedindo-lhe, entre soluços pungentes, que, como prêmio à santidade da sua vida, não lhe cerrasse os olhos sem que eles vissem, contentes, o desabrochar da sua rosa azul.

Uma nova pausa, e o meu companheiro tornou:

- Em volta do santo velhinho, no catre do mosteiro, todos choravam, compungidos. E foi, então, que, divulgada de boca em boca, foi a noticia ter a um convento das proximidades, onde jazia, orando e sonhando, uma linda infanta de Portugal. Moça e formosa, e, além de formosa e moça, - fidalga e portuguesa, compreendeu a pequenina freira, no jardim do seu sonho, o valor daquela ilusão, e correu à sua cela, consumindo toda uma noite a fazer, com os seus dedos de neve, uma viçosa flor de seda azul, que perfumou, ela própria, com essência de gerânio. E no dia seguinte, pela manhã, morria no seu catre, sorrindo entre lágrimas de alegria, por ter nas mãos tremulas, por um milagre do céu, a sua rosa azul!

O "taxi" parava no meio-fio da calçada, o comendador acrescentou, estendendo-me a mão agradecida:

- Feliz, meu amigo, aquele que morre, como esse monge e a marquesa, apertando nas mãos a rosa, mesmo mentirosa, de uma roseira de que cuidou toda a vida.




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sexta-feira, novembro 24, 2006

Tão "cômico " e ao mesmo tempo desesperador ficar se fazendo perguntas o tempo todo e inventando respostas.
Você já se sentiu totalmente estrangeiro em relação ao local em que escolheu estar ?
não pelo fato de não ter se acostumado, eu falo de espécie mesmo; de como as coisas são. sentir-se flutuando e totalmente distante das coisas "concretas": você não reconhece conhecidos na rua , não entende o porque da maioria das coisas( isso se essas coisas tem porquês- quase nunca tem, mas inventam que sim, só pra não se perderem nelas).
O ser humano é (fico pensando nisso insistentemente) o bicho , entre todos, que menos aproveita a capacidade que lhe foi dada; seria mais interessante se no lugar do cérebro, estivessemos recebido a bioluminescencia. acho que tá na hora de "genetizar" os vagalumes e deixá-los com um pingo de racionalidade; pelo menos a gente não ia ter que andar na rua tropeçando em bandos de gente burra!
Falam demais por não ter o que dizer. Mas que porra de carência é essa que precisam gritar, se exbir , ser idiota pra mostrar que, poxa vida , estão precisando de algo além dessas coisas falsas e , realmente, insuportáveis.
A falsa Auto-suficiência / segurança é outra coisa lamentável , pelo menos da pré-adolescencia até beirando a velhice."Eu sou mais eu, se você não é, problema seu."-
os que mostra ser " mais eu ",que precisa provar que "é mais eu", na verdade é mais os outros que ele mesmo. Não é necessária a autenticidade e/ou exclusividade. realmente os que são mais eles, sabem disso e não precisam sair por ai fazendo auto-promoção.
Lamentável como as pessoas não conseguem assimilar o que é ridículo.
Por mais que a "normalidade" seja, hoje em dia, tratada como algo mal, é mais aceitável alguém morno que totalmente irracional .
Cérebro pra que , se tem bundas ,caras e bocas?
Inteligência não brota de novelas .
ai que saudades eu tenho, da aurora da minha vida, quando não tinha capacidade suficiente pra ver como certas coisas são porcas.
é o tal do luxo lixo.


play dj, toca um som aí pá nois.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Sem querer, lembro de uma antiga história de fadas: duas pombas furavam os olhos de duas irmãs más, você lembra?Havia fadas naquela história.Não há ninguém dançando sobre os telhados.Nunca houve.Para não ver o cinza que se transforma em verde, olho para além deles.
O dia está muito quente.Quando a tarde avançar, sei que me encontrará sentado no degrau.E depois que o cinza tiver se transformado e rosa e em violeta e em azul profundo e por fim em negro, sei que estarei parado no centro daquele quarto, ouvindo os guinchos estridentes e o bater de asas dos morcegos.Gritarei, então.Muito alto, com todas as minhas forças, durante muito tempo.Não sei se foi esta a ordem, se será assim o depois.Mas sei com certeza que nem você nem ninguém vai me ouvir.


Caio Fernando Abreu - Morangos Mofados

"Este deve ser o bosque", murmurou pensativamente, "onde as coisas não têm nomes. E o que será do meu nome quando eu entrar?" Lewis Carrol

terça-feira, novembro 21, 2006

Maldita janela...
purple rain, red.
um fim "vazio", de novo.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Saudades de Audrey Hepburn
... Eu parado na porta às quatro da manhã. Você indo embora. Eu me perdendo então desamparado entre cinzeiros cheios e garrafas vazias. Você indo embora. Eu indeciso entre beber um pouco mais ou procurar uma beata em plena devastação ou lavar copos bater sofás guardar discos mastigar algum verso adoçando o inevitável amargo despertar para depois deitar partir morrer sonhar quem sabe. Você indo embora. Acordar na manhã seguinte com gosto de corrimão de escada na boca: mais frustração que ressaca, desgosto generalizado que aspirina alguma cura. Tocaria o telefone? Você indo embora, fotograma repetido. Na montagem, intercalar. Você indo embora você indo embora. ...

"A vida tem caminhos estranhos, tortosos às vezes difíceis: um simples gesto involuntário pode desencadear todo um processo. Sim, existir é incompreesível e excitante. As vezes que tentei morrer foi por não poder suportar a maravilha de estar vivo e de ter escolhido ser eu mesmo e fazer aquilio que eu gosto - mesmo que muitos não compreendam ou não aceitem."

domingo, novembro 05, 2006

O dia que Júpiter encontrou Saturno _ Um dos melhores do Caio Fernando

O dia que Júpiter encontrou Saturno

Foi a primeira pessoa que viu quando entrou. Tão bonito que ela baixou os olhos, sem querer querendo que ele também a tivesse visto. Deram-lhe um copo de plástico com vodka, gelo e uma casquinha de limão. Ela triturou a casquinha entre os dentes, mexendo o gelo com a ponta do indicador, sem beber. Com a movimentação dos outros, levantando o tempo todo para dançar rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e baseados, devagarinho conquistou uma cadeira de junco junto a janela. A noite clara lá fora estendida sobre Henrique Schaumann, a avenida poncho & conga, riu sozinha. Ria sozinha quase o tempo todo, uma moça magra querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz. Molhou os lábios na vodka tomando coragem de olhar para ele, um moço queimado de sol e calças brancas com a barra descosturada. Baixou outra vez os olhos, embora morena também, e suspirou soltando os ombros, coluna amoldando-se ao junco da cadeira. Só porque era sábado e não ficaria, desta vez não, parada entre o som, a televisão e o livro, atenta ao telefone silencioso. Sorriu olhando em volta, muito bem, parabéns, aqui estamos.

Não que estivesse triste, só não sentia mais nada.

Levemente, para não chamar atenção de ninguém, girou o busto sobre a cintura, apoiando o cotovelo direito sobre o peitoril da janela. Debruçou o rosto na palma da mão, os cabelos lisos caíram sobre o rosto. para afastá-los, ela levantou a cabeça, e então viu o céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em aquarela, estatizada feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia mais nada, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco parada assim, meio remota, o moço das calças brancas veio se aproximando sem que ela percebesse.

Parado ao lado dela, vistos de dentro, os dois pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros procurando bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha.

E de repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every dau, every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente endurecidos dos moço. As memórias que cada um guardava, e eram tantas, transpareceram tão nitidamente nos olhos que ela imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.

-Você gosta de estrelas?
-Gosto. Você também?
-Também. Você está olhando a lua?
-Quase cheia. Em Virgem.
-Amanhã faz conjunção com Júpiter.
-Com Saturno também.
-Isso é bom?
-Eu não sei. Deve ser.
-É sim. Bom encontrar você.
-Também acho.

(Silêncio)

-Você gosta de Júpiter?
-Gosto. Na verdade "desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra".
-Que é isso?
-Um poema de um menino que vai morrer.
-Como é que você sabe?
-Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.

(Silêncio)

-Você tem um cigarro?
-Estou tentando parar de fumar.
-Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
-Você tem uma coisa nas mãos agora.
-Eu?
-Eu.

(Silêncio)

-Como é que você sabe?
-O quê?
-Que o menino vai se matar.
-Sei de muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.
-Eu não sei nada.
-Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.
-Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.
-Ninguém compreende.
-Às vezes sim. Eu te ensino.
-Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também.
-Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?

(Silêncio)

-Você tomou alguma coisa?
-O quê?
-Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.
-Não tomei nada. Não tomo mais nada.
-Nem eu. Já tomei tudo.
-Tudo?
-Cogumelos têm parte com o diabo.
-O ópio aperfeiçoa o real
-Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.

(Silêncio)

-Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.
-Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.
-Alguma coisa se perdeu.
-Onde fomos? Onde ficamos?
-Alguma coisa se encontrou.
-E aqueles guizos?
-E aquelas fitas?
-O sol já foi embora.
-A estrada escureceu.
-Mas navegamos.
-Sim. Onde está o Norte?
-Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.

(Silêncio)

-Você é de Virgem?
-Sou. E você, de Capricórnio?
-Sou. Eu sabia.
-Eu sabia também.
-Combinamos: terra.
-Sim. Combinamos.

(Silêncio)

-Amanhã vou embora para Paris.
-Amanhã vou embora para Natal.
-Eu te mando um cartão de lá.
-Eu te mando um cartão de lá.
-No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.
-No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.

(Silêncio)

-Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada do meu lado, olhando de perfil.
-Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.
-Vamos nos ver?
-No teu chá. No meu chá.

(Silêncio)

-Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
-Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
-Vou te escrever carta e não te mandar.
-Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
-Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
-Vou ver Saturno e me lembrar de você.
-Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
-O tempo não existe.
-O tempo existe, sim, e devora.
-Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
-Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
-E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.

(Silêncio)

-Mas não seria natural.
-Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
-Natural é encontrar. Natural é perder.
-Linhas paralelas se encontram no infinito.
-O infinito não acaba. O infinito é nunca.
-Ou sempre.

(Silêncio)

-Tudo isso é muito abstrato. Está tocando "Kiss, kiss, kiss". Por que você não me convida para dormirmos juntos.
-Você quer dormir comigo?
-Não.
-Porque não é preciso?
-Porque não é preciso.

(Silêncio)

-Me beija.
-Te beijo.

Foi a última pessoa que viu ao sair. Tão bonita que ele baixou os olhos, sem saber sabendo que ela também o tinha visto. Desceu pelo elevador, a chave do carro na mão. Rodou a chave entre os dedos, depois mordeu leve a ponta metálica, amarga. Os olhos fixos nos andares que passavam, sem prestar atenção nos outros que assoavam narizes ou pingavam colírios. Devagarinho, conquistou o espaço junto à porta. Os ruídos coados de festas e comandos da madrugada nos outros apartamentos, festas pelas frestas, riu sozinho. Ria sozinho quase sempre, um moço queimado de sol, com a barra branca das calças descosturadas, querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz.

Mordeu a unha junto com a chave, lembrando dela, uma moça magra de cabelos lisos junto à janela. Baixou outra vez os olhos, embora magro também. E suspirou soltando os ombros, pés inseguros comprimindo o piso instável do elevador. Só porque era sábado, porque estava indo embora, porque as malas restavam sem fazer e o telefone tocava sem parar. Sorriu olhando em volta.

Não que estivesse triste, só não compreendia o que estava sentindo.

Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, apertou os dedos da mão direita na porta aberta do elevador e atravessou o saguão de lado, saindo para a rua. Apoiou-se no poste da esquina, o vento esvoaçando os cabelos, e para evitá-lo ele então levantou a cabeça e viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Visto assim parecia não um moço vivendo, mas pintado num óleo de Gregório Gruber, tão nítido estava ressaltado contra o fundo da avenida, e assim estava, mas sem compreender, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco, a moça debruçou-sena janela lá em cima e gritou alguma coisa que ele não chegou a ouvir. Parado longe dela, a moça visível apenas da cintura para cima parecia um fantoche de luva, manipulado por alguém escondido, o moço no poste agitando a cabeça, uma marionete de fios, manipulada por alguém escondido.

De repente um carro freou atrás dele, o rádio gritando "se Deus quiser, um dia acabo voando". Na cabeça dele soaram cinco tiros. De onde estava, não conseguiria ver os olhos da moça. De onde estava, a moça não conseguiria ver os olhos dele. Mas as memórias de cada um eram tantas que ela imediatamente entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante em que ele atravessou a avenida sem olhar para trás.

texto semi-inedito - caio fernando

Mal vejo você entre as sombras. Os retalhos da luz que vem de fora e entra pela janela aberta iluminam trechos do seu corpo parado na porta. Acurva do braço, na altura do ombro, a cintura , o cabelo quando bate no ombro. Detalhes tão pequenos de nós dois. Não sei se você me olha, não sei se você me vê. Que longo, penso , que longo caminho tive que percorrer para chegar até você. De onde estou , parado no extremo oposto da porta onde você está , também não sei se o que vejo será mesmo um corpo real --- o seu , seu corpo exato, particular , inconfundível --- ou apenas uma ilusão dos meus sentidos . Estes que nunca mais se recuperaram da loucura de Ter mergulhado um dia no seu gosto, no seu cheiro, no seu tato. Não te conheço, nunca te vi. E hoje, trago apenas uma pedra no meu peito. Mas nessa luz vermelha que vem de fora e não sei se será néon, abajur ou por do sol, as imagens que recupero me trazem de volta outros momentos. Não este, em que estou parado aqui, na extremidade do espaço que também ocupa, mas outros, aqueles: nossos momentos. Além do fluxo sem nenhum movimento, nada mais acontece nesse ar vermelho para aproximar, um pouco mais , seu corpo do meu,. Clima , sugestão, blues. Meu bem , meu mal : dançaremos na chuva como dois simpáticos canastrões de musical americano ou nos esbofetearemos aos gritos, feito casal de melodrama neo-realista ?Fritaremos juntos almôndegas em lata ou deslizaremos pela pista ao som de Danúbio Azul, entre cortinas de renda sopradas pelo vento ? Clichê, filme, vida real: onde encontrar o jeito certo, a palavra justa? Vejo você, mas entre sombras , e foi tão longo chegar até aqui, meu bálsamo benigno. Não me diga não , não me diga adeus. Enquanto nada acontece , nenhum minuto se passa , palavras não ditas atravessam o ar que nos separa . Chegar , partir, reaprender. Ao lado do telefone , fumando espero ao som de Billie Holiday. Nunca é tarde, nunca é demais. Respiro fundo , estendo a mão . E vou deixando de sentir medo, e não me importo que você ria da minha cara ou me chame muitas

O Significado do Fim _ C.F.A

O Significado do Fim

Eu deveria cantar
Aqueles cafés em noites frias
Você tão magro no cinema
O cinto pele de cobra
Conhaques de cortesia
Um beijo de herança
Uma velha maldição
Na contra-mão
O sonho andava pela rua a dois
Alguém roubou nossa foto
Viramos personagens de um livro

Depois lentamente
As coisas foram mudando
Não mais os beijos
Não mais as ruas
O que era corpo foi virando voz
Cada vez mais distante
Mais difícil
Cada vez mais o sonho
Próximo ao fim
Alguém roubou nosso sonho

Hoje escrevo tudo o que não disse
A tempo
Relembro palavras
Refaço o caminho vago
Na contra-mão
Desvio pela tangente
Enquanto todos querem saber de mim
Enquanto todos procuram saber de nós
O significado do fim

Eu deveria cantar
Rolar de rir ou chorar
Eu deveria
Mas desaprendi essas coisas.

Domingo - caio fernando

Domingo

Sobre a mesinha, ao lado da pilha de livros, o cinzeiro cheio de resíduos, bolinhas de papel, pontas de cigarro.
Recostado na mesa, o corpo, na ponta do corpo a mão, na ponta da mão os dedos avançando até o maço. Vazio. Revira o cinzeiro, um peso na cabeça, escolhe a ponta maior. Um último palito de fósforo na caixa. A chama. Azulada. Traga lento, depois solta a fumaça pela boca num jato, fica olhando o fio longo sugado pelo vento da janela aberta. Pela janela aberta, o silêncio do domingo impresso num céu sem cor. Na rua deserta de rumores: domingo. Abre um livro. Os dedos circundam as letras, a unha do indicador amarelada pelo fumo, os dedos acariciam as letras como se fossem carne. Carne desconhecida, sem interesse. Um pouco fria. Letras que não dizem nada, gesto cansado, dedos que voltam à posição anterior mas, inquietos, sobem pela camisa, libertam o último botão da calça. Dedos que entram no peito, passam na pele, alcançando o pescoço, o rosto onde a barba não feita fere de leve. De um apartamento ao lado o vento rouba uma música do rádio e a traz para junto de seus ouvidos. Um samba. Gosto desse samba, pensa distraído, liga o rádio, coincidência, exatinho na mesma estação, dedos agora acompanham o ritmo batendo na colcha, mas o pano não faz som, é preciso bater na mesinha, madeira sambando, a melodia escorrega devagar pelo lado do cinzeiro, se espalha no chão. A voz acompanha baixinho a letra melancólica, amor, flor. Esmaga a ponta do cigarro na parede, atira-se sobre o assoalho, a mãe vai reclamar, nunca viu tanto relaxamento nem tanta preguiça num corpo só.
Dezoito anos e um metro e oitenta de solidão. Desliza a mão pela parede, fechando os olhos o verde deixa de ferir, as granulações miúdas do cimento parecem prometer alguma coisa, Mexe os pés sem meias de encontro à colcha, a consistência fria, um pouco viscosa, coloca arrepios na pele. Abre os olhos e encontra o verde da parede, o azul da colcha: domingo espreitando na moldura da janela. Reduzido a ele mesmo, miseravelmente, sobre a cama. Nem sono tem. Já fechou os olhos, tentou dormir mas tanta preguiça que nem sono tem. Apaga o rádio. Detesto tango argentino, nem sabe se é argentino, pode ser até brasileiro, sueco ou esquimó mas fala em navalhada, cabaré & traição, mulher de cabelo tingido, talho na saia preta mostrando a coxa, piteira, pálpebras machucadas: tango. Coisa mais cafona. A indolência aumenta com a mudez do rádio. Gosto daqueles sambas mais antigos, a batida leve, mansinho, a voz fraca do cantor dizendo bem baixinho coisas bonitas e tristes. Ou então guitarras amplificador cabelos crespos berros brilhos oh yeah! No canto do quarto, o toca-discos: uma possibilidade, Mas seria preciso levantar, escolher o disco, passar lentamente o feltro, colocá-lo no prato, apertar um botão, dois botões, aumentar o volume, diminuir o volume. Ouvir. Deitar de novo, fechar os olhos, corpo abandonado na maciez da cama, lembrança chegando, de qualquer coisa, de preferência bem enfossante, quanto mais melhor. Obrigação de sentir, se possível, chorar. Larga de novo o corpo sobre as cobertas, que merda essa carteira de cigarros vazia, podia levantar, ir até a sala, a pedir ao noivo da irmã, um saco, descer até o bar, encontrar os carinhas pelo caminho, com o violão, na certa, sentados sobre o motor do fusca, não sei como o pobre agüenta aquela porção de bundões em cima dele, como é, vamos dar uma volta? Não quero, estou na fossa. Ou não dizer nada, são uns animais, não iriam entender, perguntariam por que, ela te chutou? não iriam entender que vezenquando a gente fica triste sem motivo, ou pior ainda, sem saber sequer se está mesmo triste. Mas podia aceitar, entrar no carro, vamos até à praia? deitar a cabeça nos braços, apoiar os braços na janela aberta, vento entrando, remexendo nos cabelos, no rosto, jeito de lágrima querendo rolar.
A réstea de sol encolhe no chão: tempo. Só esse sol sem cor neste dia sem cor nem jeito de domingo. Idiotice: por que domingo precisa ter um jeito especial, mania de esperar que as coisas sejam de um jeito determinado, por isso a gente se decepciona e sofre. Na mesa, os livros oferecem consolo. Vontade de ler um troço decente. Mas é preciso passar por um porção de besteiras até chegar ao que interessa. Vontade de ter um pensamento bem profundo, desses que fazem a gente se surpreender que tenham saído da nossa cabeça mesmo, naquela modéstia que só se tem quando se está distraído — desses pensamentos que nas revistas em quadrinhos aparecem em forma de lâmpada sobre a cabeça do cara. Mas o quê? Sobre a vida, um combate que aos fracos abate e aos fortes e aos bravos só pode exaltar? Sobre o amor, que é isso que você está vendo hoje beija amanhã não beija depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será? Ou sobre a cultura e a civilização, elas que se danem ou não contanto que me deixem ficar na minha? Tudo já foi pensado: vida, amor, cultura, civilização, liberdade, anticoncepcionais, comunismo, esterilização na Amazônia, exploração das potências estrangeiras, mais que nunca é preciso cantar, guerra fria e vem quente que eu estou fervendo. Tudo na mesma merda. Pudesse abrir a cabeça, tirar tudo para fora, arrumar direitinho como quem arruma uma gaveta. Tomar um banho de chuveiro por dentro.
Em um metro e oitenta, dezoito anos, e em dezoito anos, seis meses, quatro dias, dezesseis horas e vinte minutos (em breve vinte e um). Nesse amontoado de características, sessenta quilos de magreza e solidão. Encosta o corpo na cama, a mão passando de leve no xadrez do cobertor dobrado a seus pés, o rosto na parede que o acolhe com o sem compromisso de sua impessoalidade, a mão passa sobe desce e de leve, de leve começa a chorar.


(ABREU, Caio Fernando. O inventário do ir-remediável.)

"Dois ou tres almoços" - Caio F

Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos.
Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.


(Publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", 22/04/1986)

LUZ E SOMBRA - Caio Fernando

LUZ E SOMBRA

Deve haver alguma espécie de sentido ou o que virá depois?-são coisas assim as que penso pelas tardes, parado aqui nesta janela, em frente aos intermináveis telhados de zinco onde às vezes pousam pombas, e dito desse jeito você logo imagina poéticas pombinhas esvoaçantes, arrulhantes.São cinzentas, as pombas, e o ruído que fazem é sinistro como o de asas de morcego.Conheço bem os morcegos, seus gritinhos agudos, estridentes.Mas não quero me apressar.Penso que se conseguir dar algum tipo de ordem nisto que vou dizendo haverá em conseqüência também algum tipo de sentido.E penso junto, ou logo depois, não sei ao certo, que após essa ordem e esse sentido deve vir alguma coisa.
O que virá depois?-pergunto então para a tarde suja atrás dos vidros, e me sinto reconfortado como se houvesse qualquer coisa feito um futuro à minha espera.Assim como se depois do chá fumasse lentamente um cigarro mentolado, olhando para longe, aquecido pelo chá, tranqüilizado pelo cigarro, enlevado pelo longe e principalmente atento ao que virá depois deste momento.Faz tempo não tomo chá, e controlo tanto os cigarros que, cada vez que acendo um, a sensação é de culpa, não de prazer, você me entende?
Não, você não me entende.Sei que você não me entende porque não estou sendo suficientemente claro, e por não ser suficientemente claro, além de você não me entender, não conseguirei dar ordem a nada disso.Portanto não haverá sentido, portanto não haverá depois.Antes que me faça entender, se é que conseguirei, queria pelo menos que você compreendesse antes, antes de qualquer palavra, apague tudo, faz de conta que começamos agora, neste segundo e nesta próxima frase que direi.Assim: é um terrível esforço para mim.Se permanecer aqui, parado nesta janela, estou certo que acontecerá alguma coisa grave - e quando digo grave quero dizer morte, loucura, que parecem leves assim ditas.Preciso de algo que me tire desta janela e logo após, ainda, do depois.Querer um sentido me leva a querer um depois, os dois vêm juntos, se é que você me entende.
Falava da janela.Poderia começar por ela, então.
É uma janela grande, de vidro.Do teto até o chão, vidro que não abre, compacto.A sala é muito pequena, não há nada nela a não ser um carpete verde-musgo, que me enjoa até o vômito.E agora me ocorre algo novo: creio que foi para não vomitar tanto e tão freqüentemente que passei a olhar pela janela, dando as costas ao carpete.
Então, os telhados.
Não me pergunte como nem por quê, mas a janela não dá para uma rua, como a maioria das janelas costuma dar.A janela dá para aqueles intermináveis telhados de zinco dos quais já falei.Sim, sim, tentei me interessar pelas manchas do zinco, seus pequenos sulcos, as ondulações e todas essas coisas.E realmente me interessei, durante algum tempo.Mas os telhados são intermináveis, você sabe.Não, você não sabe, você não sabe como tentei me interessar pelo desinteressantíssimo.Então começou novamente aquela sensação de enjôo: os telhados estendem-se até o horizonte, como um enorme carpete verde.Antes de começar a vomitar olhando os telhados, felizmente vieram as pombas.Mas como eu já disse: são cinzentas, o ruído que fazem é como o de asas de morcego.Seus bicos batem freqüentemente contra o vidro da janela.Não houvesse vidro, tocariam meu rosto.Para não vomitar, tento olhar para além dos telhados que se fundem ao infinito.Não vejo nada, só o cinza pesado do céu e a fuligem que se deposita aos poucos na beirada da janela.Ao entardecer a fuligem ganha uns tons rosados, e logo depois, quando baixa o escuro, chega o momento de me encolher sobre o carpete para finalmente dormir.
Pela manhã, todo dia, alguém enfiou um pedaço de pão pela fresta da porta, uma lata com água, como se eu fosse um cão, e um maço de cigarros.Não sei quem é.Escuto que constantemente range os dentes, o que talvez seja apenas um jeito de sorrir.Acho que no começo fumava muito, pelo menos o quarto está cheio de cinzas, de pontas de cigarros, já que não existem cinzeiros e é impossível abrir a janela, você está me ouvindo?
Não importa.Em dias muito quentes, costumo ter uma visão.Não sei se uma memória ou uma visão.De qualquer forma, em dias muito quentes, vejo claramente alguma coisa.
São três horas de uma tarde de janeiro.Estou sentado num degrau de cimento.Há três degraus do chão batido com algumas ervas daninhas, talvez urtigas, até a soleira de uma velha porta muito alta, com a pintura marrom semidescascada.Estou sentado no segundo degrau dessa porta.Sei que são três horas da tarde porque as sombras são curtas e a luz do sol muito clara.Sei que é janeiro porque faz muito calor.Não há nenhuma nuvem no céu.A rua está deserta.A rua é coberta por uma camada de terra solta, vermelha.Do outro lado da rua há um muro de pedras.Nada acontece.
Posso ver as copas de alguns cinamomos do outro lado da rua, mas estão imóveis.Não há vento.Sei que além do muro de pedras, mais abaixo, existe um rio.A tarde está tão quente e clara que eu gostaria de ir até o rio.Para isso precisaria levantar deste degrau.Há uma sombra leve sobre a minha cabeça, suficiente para que o sol não a aqueça demasiado.Estou descalço.Não sei que idade tenho, mas não devo ter chegado sequer à adolescência, pois minhas pernas nuas não têm pêlos ainda.Por estar descalço, talvez, não me atrevo a pisar a terra solta e vermelha do meio da rua.
Há cacos de vidro também, cacos verdes de vidro no meio da terra da rua, dos quais o sol arranca reflexos que doem nos meus olhos.Às vezes eu os projeto com a mão em aba na testa.Estou bem, assim.Há tanta luz que preciso contrair um pouco as pálpebras para olhar as coisas de frente.O calor de janeiro aquece meu corpo.Cruzo as mãos sobre os joelhos.Isso me parece bom.Quase tenho certeza que, do outro lado da porta marrom, alguém prepara qualquer coisa como um banho fresco ou um café novo.
E embora a rua esteja deserta, não me sinto só aqui neste degrau, nesta tarde.
Nas noites quentes desses dias quentes, costumo ter outra visão.Já não estou no degrau, mas atrás daquela mesma porta, dentro da casa.Talvez tenham se passado anos, talvez seja apenas a noite daquele mesmo dia.Não há luz.O piso é muito frio.Imagino que seja um quarto, há mosquiteiros suspensos no teto.Não tenho certeza se são mosquiteiros porque não me movimento.Penso também que podem ser teias de aranha, mas prefiro não estender a mão e tocá-los – os tules,as teias – para certificar-me.Prefiro não me certificar de nada.Através de alguma persiana aberta entra no quarto um fino frio de luz azulada.Há vozes lá fora.Imagino que existam pessoas sentadas em frente à casa, na noite quente de verão.De vez em quando, suponho, cai alguma estrela.Estou bem assim, tão bem quanto no degrau.
Não sei quanto tempo dura, nem como tudo começa.Aos poucos meus ouvidos vão separando das vozes lá de fora os guinchos agudos cada vez mais fortes, e logo depois sinto um roçar de asas no meu rosto.Vindo não sei de onde, os morcegos invadem o quarto.Sem querer, penso no teto.Não consigo vê-lo no escuro, mas de alguma forma sei que é feito de travessas finas de madeira, sustentando tijolos caiados de branco.Os morcegos esvoaçam em volta, eu não me movo.Alguns chocam-se contra as paredes, depois caem ao chão chocando estridente, fininho.Então sou eu quem começa a gritar.Sem me mover, olhos fechados, grito grito e grito até que tudo passe, e novamente me encontro encolhido sobre o carpete verde, rosto colado na janela, olhando os telhados intermináveis através do vidro.
A essa hora, quase sempre a fuligem do céu tem aqueles tons rosados.Está amanhecendo.Na porta, o pão, a lata com água, o maço de cigarros.Para apanha-los, mesmo que olhe em frente ou para cima, o verde do carpete m invade os olhos e sempre vomito.Nem sempre sou ágil o suficiente para, com um movimento de cintura, evitar que o vômito caia sobre o pão, a água, os cigarros.
E quando vomito sobre eles, sempre escuto o ranger de dentes atrás da porta.Nesses dias não como, não bebo, não fumo.Apenas caminho até a janela e, desde o momento em que o rosa se desfaz e o cinza baixa outra vez, as pombas bicando meu rosto protegido pelo vidro, repito sempre assim – deve haver alguma espécie de sentido ou o que virá depois?
Não choro mais.Na verdade, nem sequer entendo por que digo mais, se não estou certo se alguma vez chorei.Acho que sim, um dia.Quando havia dor.Agora só resta uma coisa seca.Dentro, fora.
Por vezes fecho os olhos e tenho a impressão que esses telhados intermináveis são a única coisa que existe dentro de mim, você me entende agora?O quê?Sim, tenho vontade de me jogar pela janela, mas nunca foi possível abri-la.Não, não sei o que gostaria que você me dissesse.Dorme, quem sabe, ou está tudo bem, ou mesmo esquece, esquece.Não consigo.Quando vomito sobre o pão, não consigo comer nem vomitar depois.Gosto de vomitar, é um pouco como se conseguisse chorar.Quem sabe você conseguiria pelo menos me ensinar um jeito de vomitar sem precisar comer?Apesar das minhas unhas crescidas, ainda não estão longas nem afiadas o suficiente para que possa crava-las em minha própria garganta.Sim, devo ter lido isso em algum livro.Mesmo dito assim, talvez seja essa a única saída.Gostaria de evitá-la.
Dentro de mim, não consigo deixar de pensar que há alguma espécie de sentido.E um depois.Quando penso nisso, é então como se alguém dançasse sobre esses intermináveis telhados dentro de mim.Sobre os telhados cinzentos alguém vestido inteiro de amarelo.Não sei por que exatamente amarelo, mas brilha.O vento faria esvoaçar seus panos e cabelos.Num grande salto aberto, esse alguém que dança alcançaria a janela abrindo-a com um leve toque das pontas dos dedos.Quase sempre tenho certeza que deve ser você.
Não, não diga nada.Prefiro não saber que não.Nem que sim.Você me despreza por estar aqui assim parado?
E outra vez, não diga nada.Não consigo ver claro seu rosto que os panos e os cabelos cobrem por inteiro, soprados pelo vento.Sei também que, após o salto, você me tomaria pela mão para que eu finalmente levantasse daquele segundo degrau, atravessando a rua de terra solta quente vermelha para, quem sabe, mergulharmos juntos na água fresca do rio.Sei ainda que você me tiraria daquele quarto escuro, entre véus e teias, e mataria um a um os morcegos, para que sentássemos à frente da casa, sem os outros, espiando a queda vertical das estrelas na noite quente de janeiro.
Queria pensar que é esse o sentido, que será esse o depois.Não sei se posso.Há dias, como hoje, em que por mais que minta sequer consigo ver você, seus membros longos que o vento rouba dos panos.Só escuto os dentes rangendo e os ruídos internos do meu próprio corpo.Tudo isso me cega.Leva-me daqui, eu peço.E cruzo as duas mãos sobre o peito, como se sentisse frio ou afastasse demônios.Aperto o rosto contra o vidro.Duas pombas, cada uma delas bica um de meus olhos.Talvez um dia consigam quebrar o vidro.Sem querer, lembro de uma antiga história de fadas: duas pombas furavam os olhos de duas irmãs más, você lembra?Havia fadas naquela história.Não há ninguém dançando sobre os telhados.Nunca houve.Para não ver o cinza que se transforma em verde, olho para além deles.
O dia está muito quente.Quando a tarde avançar, sei que me encontrará sentado no degrau.E depois que o cinza tiver se transformado e rosa e em violeta e em azul profundo e por fim em negro, sei que estarei parado no centro daquele quarto, ouvindo os guinchos estridentes e o bater de asas dos morcegos.Gritarei, então.Muito alto, com todas as minhas forças, durante muito tempo.Não sei se foi esta a ordem, se será assim o depois.Mas sei com certeza que nem você nem ninguém vai me ouvir.


Caio Fernando Abreu - Morangos Mofados

Amigos não são para essas coisas - Caio F

Amigos não são para essas coisas
"Amigos não 'são para essas coisas', não. Isso é um clichê detestável, significando quase sempre que amigo é saco de pancadas, é uma espécie de privada onde o outro pode jogar objetos, detritos imundos e dar descarga. Amigos são para dividir o bem e o mal, mas também para deixarem as coisas sempre limpas entre eles - amigos devem ser solidários. Um dos meus maiores amigos, [...], que vive em Paris há quase 30 anos e é soropositivo há 9 (mas graças a Deus saudabilíssimo), tem sempre a preocupação de ser útil aos amigos. Quase não fala, não envia flores, não escreve cartas - mas quando procurado está sempre ali, firme e cheio de informações práticas para ajudar a gente. Amigos são também para escrever cartas enormes e um tanto idiotas como esta, cheia de carências, porque gostam de outros amigos e não querem que as relações de amizade tombem nesse poço nojento de brutalidade e vulgaridade que viraram os anos 90". (Caio F: Cartas; Rio de Janeiro: Ed. Aeroplano, 2002, p. 297)

sábado, novembro 04, 2006

nem sei

comunicação é uma das "artes" mais falha que alguém conseguiu inventar.
pense no instinto como animal.O certo seria agir por impulsos, e como algo fisiológico, o outro, da mesma espécie, entenderia(mesmo porque os impulsos são parecidos com um robo, que age sob um manual de instrução, no caso dos humanos, o fisiologico).e pense que não teria também aquelas correntes "intelectuais" de freudianisto, skinnerzismo ...niilismo, seria um luxo! - premio cerebro de ouro- a evolução da espécie, mais conhecidos como "superdotados", hoje em dia.
Os superdotados tem sua comunição verbal ( e também de relações interpessoal)
muito limitada. Será que os superdotados acharam o porque que tantos saussures, chomskys e etc quiseram provar/ responder?
partindo do principio, o qual somos os mais racionais e os mais limitado - porque limitado(novamente!).Pense que os animais irracionais, e sim, só tendo uma exceção, cumprem com seu papel estipulado: reagem a todo ataque, sobrevivem, dormem, procriam ou seja, nãos lhes foi dado outra capacidade senão a instintiva.
Já para o homem lhe foi dada a maior "máquiana" trituradora de conceitos, e o que ele fez com o cérebro ? - dividiu em gavetas, blocos, pastas e uma dessas pastas chama-se conceito que é o mesmo que resumir ao maximo algo e fazer com que todos estejam entendendo. o mesmo que decorar bhaskara e jogá-la na prova, pelo que disse o matematico para o professor, que passou ao aprendiz e sim, sem algum questionamento/ou flexibilidade sobre a teoria.
é incrivel o ser humano não distinguir o que realmente é seu e o que é de um outro, que passou pra outro e para os que viviriam, intactos conceitos.
sim; matéria bruta: Religião Produção: lavagem cerebral fortalecendo-se na fragilidade e/ ou defeito da éspecie( forma-se o pecado) Produto Final: um ser pensante deixando-se render por algo q disseram ser verdade, esse medo da mentira, é realemnte uma fragilidade da especie.
Quando deveria ser Máteria Bruta: religião Produção: lavagem cerebral causando reflexão e questionamento Produto final: homem agindo de acordo com o questionamento e esta racionalmente preparado para aceitar ou não.
Já a comunicação foi formada através do conceito, já não bastou resumir algo, teria também que ser colocado em torno de mais conceitos para chegar a algo que seria escrito em um livro de não muitas páginas.
O pior erro de um ser humano, com a obrigação de estar dentro da roda, é não entender que existe o que a pessoa vivencia,´recebe estímulos que levará a informação ao cérebro, codificando-a para depois colocá-la dentro de gavetas e pastas e fichas.acaba-se a liberdade ser ser voce mesmo. de inventar o que se adeque a sua forma de toda vida.Esse ciclo é formado por fisiológico, comportamental, experimental , racional , entre outros, que supõe que , cada um teve um modo de viver, será demais diferente um do outro, ou acontece raras coincidencias; o maior erro, repito, é querer que entendam o que vc diz do mesmo modo com que vc recebeu e passou pelo processo e finalmente, se comunicou.
Talvez os superdotados não estão tendo o valor que deveria ser dado. foram privilegiados, e , quem sabe, responde todo dia o que sausurre ou outro linguista, morreu se perguntando: Os mais inteligentes não conseguem resumir em gavetas o que lhe foi dado para ser triturado, amassado . ou talvez tenha a corrente dos outros inteligentes, que conseguiram ver mas ficam na roda para não pirar.
ou não .

Apenas uma Maçã - CFA

Apenas uma maçã

Nascendo nas minhas pupilas, círculos dourados se estendem até o infinito. A maçã ofega em cima da mesa. A primeira percepção é um grito de luz sobre o branco, a presença da maçã, contornos imprecisos contra a janela. Os círculos ampliados concentricamente contêm átomos de poeira em passeio pela manhã. É manhã? Não sei: é silêncio apenas. Fecho os olhos. Somente a memória fala: porque é certo que as pessoas estão sempre crescendo e se modificando, mas estando próximas uma vai adequando o seu crescimento e a sua modificação ao crescimento e à modificação da outra; mas estando distantes, uma cresce e se modifica num sentido e outra noutro completamente diferente, distraídas que ficam da necessidade de continuarem as mesmas uma para a outra. O corpo ao lado, vestido, e o movimento que pressinto de recusa. Mas ela não fala. Apenas olha. As pupilas cheias de pequenos pontos dourados. Pontos de fogo, de ouro, de luz. Pontos de: não.
— Não vou perguntar por que você voltou, acho que nem mesmo você sabe, e se eu perguntasse você se sentiria obrigado a responder, e respondendo daria uma explicação que nem mesmo você sabe qual é. Não há explicação, compreende? Eu também não queria perguntar, pensei que só no silêncio fosse possível construir uma compreensão, mas não é, sei que não é, você também sabe, pelo menos por enquanto, talvez não se tenha ainda atingido o ponto em que um silêncio basta? É preciso encher o vazio de palavras, ainda que seja tudo incompreensão? Só vou perguntar por que você se foi, se sabia que haveria uma distância, e que na distância a gente perde ou esquece tudo aquilo que construiu junto. E esquece sabendo que está esquecendo.
Pede um cigarro, um objeto nas mãos torna mais fácil uma conversa dessas, compreende? A fumaça sobe devagar, já não existem os círculos dourados, agora são apenas cinza — a fumaça. Em torno, nada mudou. Até a água esverdeada do aquário parece a mesma. Espero. O peso na cabeça se dissolve aos poucos em contato com o dia.
— Não quero complicar nada. Nunca quis. Também não queria falar. Mas eu não podia simplesmente receber você com a cara de ontem.
Sentada na poltrona ao lado da janela, uma cara de hoje, o cabelo preso na nuca, o casaco do pijama escondendo as pernas, os pés descalços aparecendo. Movimento o corpo sob o lençol, sinto o contato do pano em toda a pele. Estou nu e ela adivinha o meu pensamento. Sorri:
— Não houve nada. Você não precisa se preocupar pelo que não houve. Você estava bêbado demais para qualquer coisa.
O cigarro, a maçã nas mãos: o tempo colocou na testa uma ruga que antes não havia.
De repente sinto medo. Um medo antigo, o mesmo que sentia o menino escondido embaixo da escada, esperando castigos. Um medo e um frio que nascem de alguma zona escondida no cérebro, nas lembranças, nas coisas que o tempo escondeu ao avançar, como se recuando súbito pusesse a descoberto todos os cantos invisíveis, todas as teias de aranha recobrindo velhos muros, os mesmos que tantas vezes tentei escalar sem que houvesse nada depois, nenhum caminho, nenhuma casa. Nada.
EU — Mas detesto analista amador.
ELA — Campo ou bosque ou deserto, qualquer coisa assim, compreende? O importante é que seja ao ar livre. Colabora, imagina. É só um teste.
EU — Um deserto, então.
ELA — Sem nada?
EU — Nada.
ELA — Mas nem uma palmeira?
EU — Nenhuma.
ELA — Um rio, qualquer coisa?
EU — Nada. Só areia.
ELA — E árvores?
EU — Nada.
ELA — Bichos?
EU — Nada.
ELA — Vento?
EU — Nada.
ELA — Água?
EU — Nada.
ELA — E a chave?
EU — Não encontro a chave.
ELA — E o muro?
EU — Muro tem.
ELA — E como é o muro?
EU — Antigo, feio, todo descascado, tijolos aparecendo, um pouco de limo, enorme.
ELA — Você sobe?
EU — Tento subir. Várias vezes. Mas caio, arranho os pulsos, sai sangue. Dói muito. Sempre tento subir, sempre caio outra vez. Mas sei que um dia eu consigo.
ELA — E depois?
EU — Depois o quê?
ELA — Depois do muro, o que tem?
EU — Nada.
ELA — Nada?
EU — Absolutamente nada.
ELA — E você, o que você faz, no nada?
EU — Não sei, me desintegro, acho.
ELA — E não dói.
EU — Não. Não dói.
(silêncio)
ELA — Você já tentou o suicídio alguma vez?
EU — Três, por quê?
ELA — O muro que você tenta subir. O muro é a morte.
EU — Ah.
(silêncio)
ELA — Você agora vai-me achar piegas, mas deixa eu perguntar.
EU — Pergunte.
ELA — Você não acredita em amor?
EU — Acho que não. Como é que você sabe?
ELA — Não existe água. A água é o amor.
EU — Ah. Que mais?
ELA — Nada.
EU — Nada?
ELA — É. Nada. Você não acredita em nada. Acha tudo estéril. Vazio. Seco. Um deserto. Nem problemas você tem.
EU — Problemas?
ELA — É. Os bichos.
EU — Ah.
ELA — Nem ideais. Com o perdão da palavra.
EU — Ideais?
ELA — É. As árvores.
EU — E daí?
ELA — Daí, nada.
(silêncio)
EU — Pronto: mergulhou no silêncio oceânico.
(silêncio)
ELA — Você não passa dum puto niilista. O diabo é que eu gosto de você paca.
Não mais. Ela apanha o cigarro, joga o toco pela janela aberta. Apanha a maçã.
— Eu ia pintar essa merda. Mas acho que não há mais nada a dizer sobre a droga duma maçã. Nada a fazer, também.
— A não ser comê-la.
— É, comê-la. Mas esta está velha.
— Porque eu, meu filho, eu só tenho fome. E esse jeito instável de pegar uma maçã no escuro — sem que ela caia.
— Que saco, hein? Estava demorando.
— O quê?
— A citação. Quem é?
— Clarice Lispector.
Ela não sorri. Houve um tempo em que tive um rio por dentro, mas acabou secando.
EU — É possível um rio secar completamente?
ELA — Claro que é.
EU — Mas será que ele não enche depois? Nunca mais?
ELA — Alguns sim, outros não.
EU — Mas nunca mais?
ELA — Sei lá, acho que não.
EU — Você tem certeza?
ELA — Certeza eu não tenho. Só estou dizendo que acho. Afinal não sou nenhuma especialista em matéria de rios, secos ou não.
EU — Sabe?
ELA — O quê?
EU — Eu tinha esperança que o rio voltasse a encher um dia.
O dia avança lento. Quem pode deter o avanço do tempo? Alguma coisa vai ser dita ou feita, o tempo prepara meus ouvidos e meu corpo para as palavras ainda em gestação. Levanto as duas mãos, veias estendidas sob a tessitura clara da pele, dedos desertos como se segurassem uma palavra intangível. Anêmona. Varanda. Circunlóquio. Hipérbole. Cantata. Coleóptero. Fazendo um gesto, talvez. Ou falando. Como dói o deserto de dedos desassombrados. Entre eles, a revista, a ilustração: uma orquestra sinfônica. Merda para todas as orquestras sinfônicas. Nos banquinhos, as bundas assentadas, violinos, fagotes. Gozado fagote, não é? Parece um cavalo galopando em cima de nozes, oboés, contrabaixos. E contracimas, não tem, hein?. Sopé. E girândolas. Gôndolas girando? Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais — por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia — qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido. Não digo. Atrás do aquário, os dois olhos confundidos com os peixes. Será que peixe gosta de maçã? Mas se tivesse ido até o fim, teria voltado? Voltar não será como ir até o fim, não será prolongar o processo em vez de abreviá-lo? Nunca soube a cor exata de seus olhos. Quando os via muito de perto, minha única preocupação era observar o movimento dos pontinhos dourados no fundo das pupilas. Mas em que cor estavam contidos esses pontinhos, boiando em castanho, em azul, em verde, em negro? O cigarro queima os dedos, fumado até o fim. O sol ilumina um remendo na cortina. A mancha encolhe lentamente.
EU — Você gosta de mar?
ELA — Gosto. Parece uma coisa que eu sinto às vezes por dentro e nem sei bem como é. Nem o que é. Acho que se um dia eu me matasse seria no mar. Queria ir entrando na água bem devagarinho, vestida de branco, descalça, cabelos soltos.
EU — Poesia fácil
ELA — Vá à merda.

Atira a maçã para cima, recebe-a de novo, indecisa, num movimento que quase descobre os seios. As pernas compridas, um pouco brancas demais. Os olhos talvez meio estrábicos. Mas a cor? Que cor? O gesto antigo de afastar um fio de cabelo inexistente.
— Vá embora — ela diz.
Visto a roupa devagar. Começo a descer as escadas. Não olho para trás. De que adiantaria olhar? De que adianta não olhar?
Vou desviando das poças sujas da chuva de ontem. O asfalto esburacado. O céu cheio de fumaça. E de repente uma maçã espatifada contra o cimento. A carne madura demais espalhada em torno. Não há nada a dizer sobre ela, não passa de uma maçã morta.


(ABREU, Caio Fernando. O inventário do ir-remediável)

Dispersos - Caio Fernando Abreu

Dispersos

Teu ego é minha base
Meu ego é teu destino
Meu destino é o teu outro
Teu destino é o meu ego
Teu outro é o meu destino
Tua base é o meu outro
Meu outro é a tua base
- Por tudo simplesmente
Não compreendo por quê: não.
Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer?
Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que cada vez aumenta ainda mais a minha necessidade de ti. Torna-se desesperada, urgente. Eu já não sei o que faço. Não sinto nenhuma outra alegria além de ti.
Como pude cair assim nesse fundo de poço? Quando foi que me desequilibrei? Não quero me afogar: Quero beber tua água. Não te negues, minha sede é clara.
Ex-pedir
Pedidos de socorro
Em todas as direções
Postado à janela
o laço na mão
ex-pirar
por dentro, inútil
medo em branco
examinando possibilidades
as mais diversas
de escape que não há
A natureza se esmera em reunir no corpo dele todos aqueles traços de beleza dispersos irregularmente pelos outros membros da família. Conjugava, assim, os cabelos pretos e lisos do pai aos olhos claros da mãe, o jeito lento de uma tia-avó ao nariz aquilino da rima, mais o corpo bem-feito de um primo aos dentes de uma sobrinha, e por aí afora. Tudo isso de maneira tão ostensiva que, em ocasiões como natal, ano-novo ou páscoa (sobretudo nas fotografias posteriores), ele sobressaía tanto que os outros parentes podiam esquivar-se a um movimento de inveja, cópias imperfeitas de um original impecável.
Não cantes como eu,
Os outros por bebedeira
Não saúdes
A morte em literatura
Boa negra
Voltada para as estrelas
Pés de chumbo
Cravados na lama:
O canhão
E sua escandalosa metafísica
E agora?
Três, quatro anos depois
Cadê você?
Cadê a grande mutação?
Pintaram as rebordosas. Continuaram pintando. Nós continuávamos resistindo mas às vezes penso que viver não deve ser apenas isso, segurar a barra.
Continuamos carregando nossas pequenas maldições – mais orgasmos, insônia, pesadelos, excessos de álcool e cigarros, procura cega, iluminações ilusórias e passageiras, etc. O mundo continua apodrecendo, os amigos vão para a Europa, para a clínica ou para a prisão, viciaram-se nas drogas mais diversas. Em nome de que resistimos? De onde tiramos essa energia, que é meio talvez uma falta de energia por não termos conseguido radicalizar e mudar alguém ou a nós próprios, ou enlouquecer e fugir pro mato. Normalmente resistimos enquanto o coração resseca, os olhos endurecem, as deliberações se frustram.
Desmascaramos a farsa para continuarmos a existir no meio dela. De que nos tem servido essa lucidez senão para chamar barra cada vez mais pesada?
Batalhamos a paz, a divina diferença. Pra termos sede de amor e de beleza.
(estou sem dinheiro no verão, baixa o astral de qualquer um)
Com ou sem nova convivência, somos profundamente infelizes. Nosso saldo é o desencanto. E você, onde andará?
(Dispersos - Caio 3D O Essencial da Década de 1980)