terça-feira, fevereiro 13, 2007

13/02/2007

quando a gente é criança parece que morte não significa coisa tão grande , pra sempre, sem volta.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

" se escucha el primer compaso de un tango cantado por una mujer."

domingo, fevereiro 11, 2007

Itinerário - cfa

Itinerário
De repente, estou só. Dentro do parque, dentro do bairro, dentro da cidade, dentro do estado, dentro do país, dentro do continente, dentro do hemisfério, do planeta, do sistema solar, da galáxia -dentro do universo, eu estou só. De repente. Com a mesma intensidade estou em mim. Dentro de mim e ao mesmo tempo de outras coisas, numa seqüência infinita que poderia me fazer sentir grão de areia. Mas estar dentro de mim é muito vasto. Minhas paredes se dissolvem. Não as vejo mais, e por um instante meu pensamento se expande, rompendo limites num percurso desenfreado. Nesse rápido espraiar, meu ser anexa a si as coisas externas. O parque, as árvores., o sol, as gentes deixam de ter existência privada e, dentro de mim, estão sob meu domínio. Como membros de meu corpo, ou pensamentos já feitos ou palavras já formuladas -eles se aninham em mim, fazendo parte do meu ser. Me torno em parque, em árvore, sol, em gentes. O processo é tão breve que sequer tenho tempo de regozijar-me com ele. Porque subitamente tudo volta.

E sou apenas um homem no parque –reduzido somente a minha condição de homem no parque Espio para fora de mim e vejo as coisas que não são mais minhas. As árvores debaixo das quais estou, esta folha que há pouco deslizou pelo meu chapéu, escorregou por ombro, atingindo a mão onde a esmago, esta gente para quem sou um homem no parque. Na minha mão o contato da folha ferida é áspero. Mas não fere. Frente a meus olhos: hirta, seca, amarelada, é uma folha do inverno. As ramificações se expandem em mil caminhos até as bordas, na tentativa já inútil de levar a seiva aos pontos mais recuados, e ela é uma coisa morta. O pequeno talo vibra entre meus dedos como um ser vivo e agonizante num último espasmo. Olho as pontas reviradas e, num gesto, torno a esmagá-la. Já não é folha, já não é nada -somente um punhado de poeira que escorrega incômoda manga adentro do casaco. No entanto, não sou um assassino: sou um homem no parque! quase grito para que as outras pessoas escutem e olhem para mim e vejam como sou inteiramente normal trivial banal e até vulgar dentro deste terno escuro, antiquado -preciso que tomem consciência do meu ser e preciso eu mesmo tomar consciência do que sou e do que significo nesta brecha de tempo. Por isso baixo os olhos e, subindo-os desde o bico dos sapatos, vistorio todo o conjunto que forma o meu ser em exposição. Calças, casaco, chapéu eu sou um homem no parque! novamente quase grito porque a realidade de repente oscila, ameaçando quebrar-se em fatias que ferem. Apoiado em minha segurança, que se revela precária, eu luto.

E eis que a luta finda. Eu cedo. Novamente as coisas se dissolvem e torno a escorregar para dentro de mim. Mas estar em mim já não é vasto. Minha extensão reduziu-se a este círculo acinzentado que é meu pensamento. Minha extensão é tão mínima que sufoco dentro dela. Tudo se resume a esta extensão. Não há mais nada fora de mim. Impossível a fuga. Meus membros se encolhem como um tecido ordinário, recém-levado, estendido ao sol. Tudo se comprime em torno de mim. Este círculo acinzentado apertando cada vez mais, repleto de arestas, de pontas aguçadas. Neste círculo estou em rotação. Meu ser vai girando, girando num lento corrupio, num movimento que é quase dança, quase ciranda. As arestas ferem leve, com jeito de carícia, as pontas apenas afagam enquanto o pensamento se esquiva, na esperança de sair ileso. Então tudo cessa.

E volta o parque com suas gentes passando, com aquela série de coisas que constituem o ser de um parque. Acendo um cigarro, minha mão treme, devolvida à segurança que em relação às coisas de fora novamente se revela eficiente. Nas minhas calças, o pó da folha é a lembrança do crime sem júri nem juiz, nem poluição. A meus pés, o trabalho das formigas é intenso neste outono quase inverno, repleto de folhas caídas. A longa fila se encaminha lenta, desviando-se de meus sapatos, folhas equilibradas sobre as cabeças, ultrapassando os pés do homem a meu lado, as pernas vagamente tortas daquela mulher mais adiante, as meias azuis daquela adolescente. Até o formigueiro, onde as despensas devem estar abarrotadas. Mas as cigarras já não cantam.

Tudo volta. Procuro retomar a meu último pensamento: tinha relação com infância e livro, eu sei. E busco. Por entre essa infinidade de formas, de signos desfeitos com que são construídos os pensamentos por entre esse amontoado de lembranças feitas de imagem incompletas como retratos rasgados; por entre essas idéias a que faltam braços, pernas, cabeças por entre os retalhos dessa caótica colcha de que é tecido o cérebro de um homem no parque, eu busco. Sem encontrar. A segurança das coisas fáceis e simples desliza entre meus dedos recusando fixar-se. E há o cigarro: essa tonalidade azulada é apenas a fumaça subindo em lentas espirais, cada vez mais densa, tomando conta de mim, eu sei, deve ser, porque as coisas não sendo o que são outra vez me jogarão num mundo de procuras e espantos.

E de novo estou em mim. Ainda preso nas engrenagens do círculo. Que desta vez não ferem. Dentro da minha pequena extensão me são permitido o movimento e o investigar. Movimento e investigar vãos, porque é tudo tão ínfimo que nem há mistérios pelos cantos. Não há perspectiva na espera de serem pressentidas. Não há sequer vértices nesta superfície despida de arestas: só a leve chama, em aceno trêmulo por entre o vazio. Mas eu não quero. Seria preciso abdicar de todas as minhas verdades essas estrutura das lentamente, dia após dia, quase minuto a minuto, suavizando os contornos da realidade quando esta se torna áspera. Seria preciso abdicar de meu ser cotidiano, construído em longo labor. Seria preciso abdicar de minha segurança, e eu a acumulei em paciência em tédio, mas a fiz forte, e se agora periclita é porque todos nós temos o nosso momento de queda. E este é o meu.

No vácuo de mim eu me despenco. Porque seria preciso também abdicar de mim mesmo para novamente reconstruir-me. Tornar a escolher os gestos, as palavras, em cada momento decidir qual dos meus seus assumir. Já esfacelei meu ser, já escolhi as porções que me são convenientes, esquecendo deliberado as outras. E são elas -serão elas? -que agora se movimentam revoltadas, pedindo passagem em gritos mudos, na ânsia de transcender limites, violentar fronteiras, arrebentando para a manhã de sol. O tremular da chama é um aceno, convite para chegar à verdade última e íntima de cada coisa.

Não quero. Não posso restar nu, despojado de mim mesmo. Não posso recomeçar porque tudo soaria falso e inútil. As minhas verdades me bastam, mesmo sendo mentiras. Não é mais tempo de reconstruir.
Em luta, meu ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja consistência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é ainda fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver .

Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De quem não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado. Basta uma pausa, um pensamento mais prolongado para que tudo caia por terra. Recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa única existência. Por isso me esquivo, deslizo por entre as chamas do pequeno fogo, porque elas queimam. queimar também destrói.
Perplexidade, recusa e medo feitos em palavra fazem tudo recuar. O círculo abandona meus membros, a chama se apaga. A luta vai-se tomando lassidão. Revolta sufocada são rumores que abafo lentamente, com a delicadeza monstruosa de quem estrangula uma criança dormindo.

Eis que começo a voltar. Não de uma galáxia distante, de outro planeta, sequer de uma cidade ou um parque. De mim, volto. Em tomo as árvores principiam a ganhar consistência, negativo aos poucos revelado, água escorrendo da capa de obscuridade. São verdes, as árvores. Seus troncos nascem da terra, se alongam em braços recobertos pelas folhas que o outono amarelou. Troncos rugosos, feito de pequenos pedaços ásperos, de cor indefinida. Mas elas são verdes. Todos as vêem verdes, mesmo agora, com as folhas amareladas, com a cor-sem-cor de seus caules. O céu azul. Mesmo sendo cinzento ou incolor o ar que o faz. É preciso dar cor e forma às coisas porque desnudas elas apavoram.
Respiro. Fecho os olhos. O ar penetra as narinas abrindo caminhos pelo corpo num automatismo que não terá fim enquanto eu viver.
Estou de volta. Minhas mãos sobre os joelhos, os joelhos cobertos pelo pano preto das calças, o pano afunilando até os pés metidos em meias listradas de azul e branco, dentro do marrom dos sapatos. Tudo me diz que estou de volta. Aceito. Suspenso no meu pulso, o tempo tiquetaqueia no ritmo do relógio. Onze horas. Preciso ir andando. Há mulher há filhos há trabalho há a prestação da televisão que passará um bangue-bangue legal e pensando como qualquer homem neste ou noutro hoje à noite e eu gosto de bangue-bangue como um menino gosta de sorvete metido no meu pijama de bolinhas nas minhas chinelas às quais se amoldam meus pés como dentro de uma fôrma e a minha poltrona funda e o cachimbo e o jornal do lado. Tudo tão simples. Já vi mil vezes cenas iguais em filmes e livros e revistas. Tanto e tanto que duvido delas. Mas dúvida faz escorregar. E no fundo, depois do longo deslizar, no fundo é Úmido e frio, apesar da chama. Faz-se necessário testar, apalpar as massas que recusam definições. Faz-se necessário avançar. Mas tudo impede o avanço. E dói.
Não.
E eis então que caminho para rua, chamo um táxi, entro nele. Eis aí que olho pela janela, vejo o parque, o banco, as pipocas que não comprei. Eis assim que encosto a cabeça no banco, apanho um cigarro e trago longamente. Eis depois que solto a fumaça de um jeito que não sei se é sopro ou suspiro. Eis.


(Caio Fernando Abreu, Itinerário in "Inventário do Ir-remediável")

Carta Anônima - CFA

"Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.

Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam? Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.

Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.

Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vezemquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo."
(Caio Fernando Abreu - Carta Anônima)

Para quem Interessar Possa - CFA

Eu não tenho culpa. Não fui eu quem fez as coisas ficarem assim desse jeito que não entendo ,que não entenderia nunca. Você também não tem culpa, vou chamá-lo de você porque nin-guém nunca ficará sabendo, nem era preciso, a culpa é de todos e não é de ninguém. Não sei quem foi que fez o mundo assim horrível às vezes quando ainda valia a pena eu ficava horas pensando que podia voltar tudo a ser como antes muito antes dos edifícios dos bancos da fuligem dos automóveis das fábricas das letras de câmbio e então quem sabe podia tudo ser de outra forma depois de pensar nisso eu ficava alegre quem sabe quem sabe um dia aconte-ceria mas depois pensava também que não ia adiantar nada e tudo começaria a ficar igual de novo no momento que um homem qualquer resolvesse trocar duas pedras por um pedaço de madeira porque a madeira valia mais e de repente outra vez iam existir essas coisas duras que vejo da janela na televisão no cinema na rua em mim mesmo e que eu ia como sempre sair caminhando sem saber aonde ir sem saber onde parar onde pôr as mãos os olhos e ia me dar aquela coisa escura no coração e eu ia chorar chorar durante muito tempo sem nin-guém ver é verdade tenho pena de mim e sou fraco nunca antes uma coisa nem ninguém me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora mas ao menos nesse agora eu quero ser como eu sou e como nunca fui e nunca seria se continuasse me entende eu não conseguiria não você não me entendeu nem entende nem entenderia você nem sequer soube sabe saberá amanhã você vai ler esta carta e nem vai saber que você poderia ser você mesmo e ainda que soubesse você não poderia fazer nada nem ninguém eu já não acredito nessas coisas por isso eu não te disse compreende talvez se eu não tivesse visto de repente o que vi não sei no mo-mento em que a gente vê uma coisa ela se torna irreversível inconfundível porque há um mo-mento do irremediável como existem os momentos anteriores de passar adiante tentando arrancar o espinho da carne...

carne há o momento em que o irremediável se torna tangível eu sei disso não queria demonstrar que li algumas coisas e até aprendi a lidar um pouco com as palavras apesar de que a gente nunca aprende mas aprende dentro dos limites do possível acho não quero me valorizar não sou nada e agora sei disso eu só queria ter tido uma vida completa elas eram horríveis mas não quero falar nisso podia falar de quando te vi pela primeira vez sem jeito de repente te vi assim como se não fosse ver nunca mais e seria bom que eu não tivesse visto nunca mais porque de repente vi outra vez e outra e outra e enquanto eu te via nascia um jardim nas minhas faces não me importo de ser vulgar não me importa o lugar-comum dizer o que outros já disseram não tenho mais nada a resguardar um momento à beira de não ser eu não sou mais tudo se revelou tão inútil à medida em que o tempo passava tudo caía num espaço enorme amar esse espaço enorme entre mim e você mas não se culpe deixa eu falar como se você não soubesse não se culpe por favor não se culpe ainda que esse som na campainha fosse gerada pelos teus dedos eu não atenderia eu me recuso a ser salvo e é tão estranho o entorpecimento começa pelos pés aquela noite eu ainda esperava quase digo sem querer teu nome digo ou escrevo não tem importância vou escrevendo e falando ao mesmo tempo com o gravador ligado é estranho me desculpa saí correndo no parque e me joguei na água gelada de agosto invadi sem ter direito a névoa dos canteiros destaquei meu corpo contra a madrugada esmaguei flores não nascidas apertei meu peito na laje fria do cimento a névoa e eu o parque e eu a madrugada e eu costurado na noite cerzido no escuro porque me dissolvia à medida em que me integrava no ser do parque e me desintegrava de mim mesmo preenchendo espaços aqueles enormes es'paços brancos terrivelmente brancos e você não teve olhos para ver que o parque era você a água você a névoa você a madrugada você as flores você os canteiros você o cimento você não teve mãos para mim só aquela ternura distraída a mesma..

dos edifícios e das ruas mas eles me desesperavam você me desesperava eu não quero falar nelas mas elas estão na minha cabeça como os meus cabelos e as vejo a todo instante cantando aquela canção de morte a minha carne dilacerada e eu ridículo queria ter uma vida completa você não se parecia com Denise tinha os olhos de mangaba madura os mesmos que tive um dia e perdi não sei onde não sei por que e de repente voltavam em você nos cabelos finos muito finos finos como cabelos finos 'minto que me bastaria tocá-los para que tudo fosse outra vez mas não toquei eu não tocaria nunca na carne viva e livre eles me rotularam me analisaram jogaram mil complexos em cima de mim problemas introjeções fugas neuroses recalques traumas e eu só queria uma coisa limpa verde como uma folha de malva aquela mesmo que existiu ao lado do telhado carcomido do poço e da paineira mas onde me buscava só havia sombra eu me julgava demoníaco mas não pense que estou disfarçando e pensando como-eu-sou-bonzinho-porque-ninguém-me-ama eu me achava envilecido me sentia sórdido humilhado uma faixa de treva crescia em mim feito um câncer a minha carne lacerada estou dentro dessa carne lacerada que anda e fala inútil a carne conjunta das xifópagas e o vento um vento que batia nos ciprestes e me levava embora por sobre os te-lhados as cisternas as varandas os sobrados os porões os jardins o campo o campo e o lago e a fazenda e o mar eu quero me chamar Mar você dizia e ria e ríamos porque era absurdo alguém querer se chamar Mar ah mar amar e você dizia coisas tolas como quando o vento bater no trigo te lembrarás da cor dos meus cabelos...

cabelos você não vai muito além desses príncipes pequenos suas palavras todas não tenho culpa não tenho culpa eram de quem pedia cativa-me eu já não conseguiria bem lento eu não conseguiria eu não sei mais inventar. a não ser coisas sangrentas como esta a minha maneira de ser um momento à beira de não mais ser não me permite um invento que seja apenas um entrecaminho para um outro e outro invento mesmo a destruição tem que ser final e inteira qualquer coisa tem que ser a última uma era inteira e a outra nascia da cintura e existia só da cintura para cima como um ipsilone mole esponjosa uma carne vil uma carne preparada por toda uma estrutura de guerras epidemias pestes ódios quedas eu me sentia culpado ao vê-Ias assim nosso podre sangue a humanidade inteira nelas que não riam e cantavam aquela sombria canção de morte brutalmente doce elas cantavam e minhas costas doíam como se eu sozinho as sustentasse e não uma à outra mas eu eu com este sangue apodrecido que assassina crianças de fome droga adolescentes bombardeia cidades e também você e todos nós grudados indissoluvelmente grudados nojentos mas me recuso a continuar ninguém sofrerá por mim sem mim chorar ninguém entende nem precisa nem você nem eu o anel que tu me deste sobre a folha que me contém sem compreender sem compreender que você carrega toda uma culpa milenar e imperdoável a História como concreto sobre os teusmeusnossos ombros Cristo sobre nossos ombros todas as cruzes do mundo e as fogueiras da inquisição e os judeus mortos e as torturas e as juntas militares e a prostituição e doenças e bares e drogas e rios podres e todos os loucos bêbados suicidas desesperados sobre os teus meus nossos ombros leves os teus porque não sabes sim sim eu tenho culpa não é de ninguém esse desgosto de lâmina nas entranhas não é de ninguém esse sangue espantado e esse cosmos incompreensível sobre nossas cabeças não posso ser salvo por ninguém vivo e os mortos não existem a fita está acabando começo a ficar tonto a dormência chegou...

Mina 15/12/06 quem sabe ao coração talvez eu pudesse eu soubesse eu devesse eu quisesse quem sabe mas não chore nem compreenda te digo enfim que o silêncio e o que sobra sempré como em García Lorca solo resta el silêncio un ondulado silêncio os espaço de tempo a nos situar fragmentados no tempoespaçoagora não sei onde fiquei onde estive onde andei nada compreendi desta travessia cega a mesma névoa do parque outra vez a mesma dor de não ser visto elas gritam sua canção de morte este sangue nojento escorrendo dos meus pulsos sobre a cama o assoalho os lençóis a sacada a rua a cidade os trilhos o trigo as estradas o mar o mundo o espaço os astronautas navegando por meu sangue em direção a Netuno e rindo não não quebres nunca os teus invólucros as tuas formas passa
Lentamente a mão do anel que eu te dei e era vidro depois ri ri muito ri bêbado ri louco ri ate te surpreenderes com a tua não dor até te surpreenderes com não me ver nunca mais e com a desimportancia absoluta de não me ver nunca mais e com minha mão nos teus cabelos dis-tante invisível intocada no vento
Perdida a minha mão de espuma abrindo de leve esta porta assim.

Harriet

Harriett
Para Luzia Peltier, que soube dela
"No fundo do peito, esse fruto apodrecendoa cada dentada."(Macalé & Duda Machado: Hotel das Estrelas)


Chamava-se Harriett, mas não era loura. As pessoas sempre esperavam dela coisas como longas tranças, olhos azuis e voz mansa. Espantavam-se com os ombros largos, a cabeleira meio áspera, o rosto marcado e duro, os olhos escurecidos. Harriett não brincava com os outros quando a gente era criança. Harriett ficava sozinha o tempo todo. Mesmo assim, as pessoas gostavam dela.Quase todo mundo foi na estação quando eles foram embora para a capital. Ela estava debruçada na janela, com os cabelos ásperos em torno das maçãs salientes. Eu fiquei olhando para Harriett sem conseguir imaginá-la no meio dos edifícios e dos automóveis. Acho que senti pena - e acho que ela sentiu que eu sentia pena dela, porque de repente fez uma coisa completamente inesperada. Harriett desceu do trem e me deu um beijo no rosto. Um beijo duro e seco. Qualquer coisa como uma vergonha de gostar.Essa foi a primeira vez que eu vi os pés dela. Estavam descalços e um pouco sujos. Os pés dela eram os pés que a gente esperava de uma Harriett. Pequenos e brancos, de unhas azuladas como de criança. Eu queria muito ficar olhando para seus pés porque achei que só tinha descoberto Harriett na hora dela ir embora. Mas o trem se foi. E ela não olhou pela janela.
Um tempo depois a gente viu uma fotografia dela numa revista, com um vestido de baile. Harriett era manequim na capital. Todo mundo falou e comprou a revista. Quase todos os dias a gente via a foto dela nos jornais. Harriett era famosa. A cidade adorava ela, mas ela nunca escreveu uma carta para ninguém.Muito tempo depois, eu a vi outra vez. Eu estava trabalhando num jornal e tinha que fazer uma entrevista com ela. Harriett estava sozinha e não ficou feliz em me ver. Continuava grande e consumida e tinha nos olhos uma sombra cheia de dor. Fumava. Falei da cidade, das pessoas, das ruas - mas ela pareceu não lembrar. Contou-me de seus filmes, seus desfiles, suas viagens - contou-me tudo com uma voz lenta e rouca. Depois, sem que eu entendesse por que, mostrou-me uma coisa que ela tinha escrito. Uma coisa triste parecida com uma carta. Tinha um pedaço que nunca mais consegui esquecer, e que falava assim:

sabe que o meu gostar por você chegou a seramor pois se eu me comovia vendo você poisse eu acordava no meio da noite só pra vervocê dormindo meu deus como você me doíavezenquando eu vou ficar esperando vocênuma tarde cinzenta de inverno bem no meioduma praça então meus braços não vão sersuficientes para abraçar você e a minha vozvai querer dizer tanta mas tanta coisa que euvou ficar calada um tempo enorme só olhandovocê sem dizer nada só olhando olhando epensando meu deus ah meus deus como vocême dói vezenquando

Quando terminei de ler, tinha vontade de chorar e fiquei uma porção de tempo olhando para os pés dela. E pensei que ela parecia ter escrito aquilo com seus pés de criança, não com as mãos ossudas. Eu disse para Harriett que era lindo, mas ela me olhou com aquela cara dura que a gente não esperava de uma Harriett e disse que não adiantava nada ser lindo. Tive vontade de fazer alguma coisa por ela. Mas eu só tinha uma vaga numa pensão ordinária e um número de telefone sempre estragado. Eu não podia fazer nada. E se pudesse, ela também não deixaria. Fui embora com a impressão de que ela queria dizer alguma coisa.Três dias depois a gente soube que ela tinha tomado um monte de comprimidos para dormir, cortou os pulsos e enfiou a cabeça no forno do fogão a gás. Foi muita gente no enterro e ficaram inventando histórias sujas e tristes. Mas ninguém soube. Ninguém soube nunca dos pés de Harriett. Só eu. Um desses invernos eu vou encontrar com ela no meio duma praça cinzenta e vou ficar uma porção de tempo sem dizer nada só olhando e pensando: que pena - que pena, Harriett, você não ter sido loura. Vezenquando, pelo menos.

_______________________________________________ABREU,

Caio Fernando. “Harriett”. O Ovo Apunhalado. L&PM Pocket. 2005. Pgs.: 127-129.

Porta - Retrato

Tinha secado: esse era talvez o ponto. Não a palavra exata, que já não tinha essas pretensões, mas a mais próxima. Sabia pouco a respeito de árvores, ou sabia de um jeito não-científico, desses de tocar, cheirar e ver, mas imaginava que o processo interno de ressecamento começasse bem antes da morte aparecer no verde brilhante das folhas, na polpa dos frutos ou na casca do tronco. Não era evidente nem externo ou explícito o que padecia. E padecia? perguntava-se detalhando os traços com as pontas dos dedos, nada que revelasse na umidade da boca ou num contorno de nariz — uma dor? Não era assim. Gostaria de voltar atrás, com sentimentos curtos e claros feito frases sem orações intercaladas, iluminar aos poucos, um mineiro, uma lanterna, o poço fundo, uma linguagem? A unha batia contra o dente. Contatos assim: uma coisa definida chocando-se com outra definida também. E não só contatos, emoções, linguagens. Quase analfabeto de si mesmo, sem vocabulário suficiente para explicar-se sequer a um espelho. Não queria assim, esses turvos. Não queria assim, esses vagos. Sem nenhum humor. Sem nada que pulsasse mais forte que o frio cuidado com que desordenava-se, um gole disciplinado de vodca quando alguma corda do violino rebentava em plena sinfonia e, no meio do palco, impossível deter o acorde. Unicamente imagens assim lhe ocorriam, essa coisa das árvores, das gramáticas, das minas, dos concertos. Elegantemente, sempre. As luvas brancas, as longas pinças esterilizadas com que tocava sem tocar o todo, o tudo e o si. Um vício que lhe vinha quem sabe da mania de ouvir música erudita, mesmo enquanto apenas vivia, antes os fones nos ouvidos que os gritos na vizinhança. E por mais que afetasse um ar de quem lentamente cruza as pernas em público, puxando com cuidado as calças para que não amarrotassem, saberia sempre de sua própria farsa. Tão consciente- mente falsa que sua inverdade era o que de mais real havia, e isso nem sequer era apenas um jogo de palavras.
A grande mentira que ele era, era verdade. Ou: a mentira nele nunca fora fraude, mas essência. Seu segredo mais fundo e mais raso, daí quem sabe a surpresa branca de quando ouvira um quase-amigo dizer que não passava de uma personagem. Prometera-se sentimentos sem intercalados, mas sentia agora uma necessidade de explicar ao ninguém que superlotava sua constante platéia, com ele sempre fora assim: quase-amigos, nada de intimidades. Mas voltando atrás no ir adiante: uma surpresa quê. Não, não uma surpresa quê. Uma não-surpresa surpreendida, pois como e porque se fizera visível e dizível naquele momento o que nem sequer alguma vez escondera? Perdia-se, não eram teias. Nem labirintos. Fazia questão de esclarecer que sua maneira torcida não se tratava de estilo, mas uma profunda dificuldade de expressão. Por esse lado, quem sabe? As emoções e os pensamentos e as sensações e as memórias e tudo isso enfim que se contorce no mais de-dentro de uma pessoa — tinham ângulos? Havia lados mais como direi? Fragmentava-se: era os pedaços descosturados de uma colcha de retalhos. Pedia atenção aqui, por favor, mais por gestos, entonações ou simplesmente clima, e regirava: era os retalhos, um por um, não a colcha, ele. Desde o xadrez vermelho ao cetim roxo sem estampa, e assim por diante, todos. Quase parava de aborrecer-se então, como quem troca súbito uma peça para violino e cravo por um atabaque de candomblé. O leve tédio suspenso como poeira espanada logo voltava a desabar. O bocejo era a compreensão mais amarga que conseguia de si mesmo. E posto isso, cabia a seguir qualquer atitude desesperada como casar, tentar o suicídio, fazer psicoterapia ou um concurso para o Banco do Brasil.
Localizava-se, mais fácil assim, dando nome às coisas. Um entusiasmo tênue como o gosto de uma alface. Isso, estar, ser. Uma vontade de interromper- se aqui, paladar estragado pelo excesso de cigarros tentando inutilmente dar um nome ao gosto que fugia entre os dentes. Em algum quarto, há muito não sabia de línguas no seu corpo, ou tão sabidas tinham se tornado que. Vacilava entre a certeza quase absoluta de estar alcançando qualquer coisa próxima de uma sabedoria inabalável, alta como um minarete, gelada como um iceberg — melhor assim: uma montanha de compreensão sem dor de todas as coisas. Ou, talvez o ponto, nem icebergs, nem minaretes — mas árvore. Inventava com os olhos no ar vazio à sua frente um verde copado de sumarentos frutos, como se diria num outro tempo, se é que alguma vez se disse, dizia sim, dizia agora, desavergonhado e frio. Verde copado de sumarentos frutos. Folhagem de seda lustrosa. Tronco pétreo ancestral. O seco invisível como verme instalado no de-dentro. Impressentível, sob a casca, caminhando lento, questão de tempo, apenas, e semente contendo o galho crispado, mão de bruxa, roendo. Tinha dois olhos duros. Dois olhos grandes de quem vê muito, e não acha nada. Tinha secado, era certamente esse o ponto. Nunca a palavra exata, esclarecera de início. Já não tinha mais essas pretensões.

Caio/sp/78

sábado, fevereiro 10, 2007

Trainspotting

" Escolha vida. Escolha um emprego. Escolha uma carreira, escolha uma família, escolha uma televisão enorme, escolha máquinas de lavar, carros, CD players, e abridores de lata elétricos.
Escolha boa saúde, baixo colesterol e seguro dentário. Escolha prestações fixas para pagar. Escolha uma casa. Escolha seus amigos.
Escolha ter roupas e acessórios. Escolha ter um terno feito do melhor tecido. Se masturbar domingo de manhã pensando na vida. Escolha sentar no sofá e ficar vendo jogos de adivinhação na televisão enchendo a boca de junk food. Escolha acabar apodrecendo. Ter uma família e se envergonhar dos filhos egoístas que pôs no mundo para substituí-lo. Escolha seu futuro. Escolha vida.


Mas por que eu ia querer coisas como estas? "

terça-feira, fevereiro 06, 2007

" Hey there, all you middle menThrow away your fancy clothesAnd while you're out there sittin' on a fenceSo get off your ass and come down here'Cause rock 'n' roll ain't no riddle manTo me it makes good, good sense."
AC/DC

" Mesmo que eu não mereça, venha. Ou talvez os que menos merecem precisem mais. Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri. Mas tantos defeitos tenho. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais"