segunda-feira, abril 02, 2007

TORTURAS DE NATAL - Caio Fernando Abreu

Torturas do Natal (1)Última Pagina – Revista A-Z, dezembro, 1990.

Cada vez que olho esta fotografia tenho uma espécie de susto, e penso obviedades do tipo: "Meu Deus, o tempo existe!" Tirada no Natal de 1956, ela tem - cruzes! - 34 anos. Todo Natal, era sagrado, minha mãe emperiquitava a mim e a meu irmão Cláudio com modelinhos de linho branco e odiosas meias soquete,com elásticos eternamente frouxos, que acabavam escorregando patéticos pelas canelas finas - e chamava o fotógrafo. Não era nada simples chamar um fotógrafo naquele tempo, ainda mais o "Seo Fininho"."Seo Fininho" era magro como um aspargo, branco como a polpa das peras que começavam a amadurecer no quintal. Além disso, tinha a alma delicada e era o único fotógrafo de Santiago do Boqueirão. Tão requisitado que, dizem, às vezes era chamado até para fazer fotos na Argentina, do outro lado do rio Uruguai. Por isso mesmo, era preciso chamá-lo às três da tarde para que aparecesse lá pelas cinco ou seis. Durante todo esse tempo, interminável para Gremlins de sete, oito anos de idade como nós - eu e Cláudio ficávamos enfatiotados e absolutamente proibidos de tocar nos brinquedos colocados ao pé da árvore. Era horrível. Sim, porque no 25 de dezembro à tarde simplesmente toda a molecada estava deitando e rolando pelas ruas da cidade com os brinquedos ganhos na véspera. E nós ali, presos naquelas armaduras de linho branco, com golas abotoadas até o pescoço.
Torturas de Natal (2)
Embora - ou por isso mesmo - tivesse apenas sete ou oito anos de idade, eu já era capaz de ódios profundos. O suor escorria por baixo do paletó (a gente dizia trajo), as meias escorregavam canelas abaixo e o ódio pelo pobre \ "Seo Fininho" fervia n'alma, assim mesmo com apóstrofe. Só que, fazer malcriação, nem pensar: éramos filhos de Dona Nair, a primeira das dez mais elegantes da cidade, do seu Zaél, orador oficial do Clube União Santiaguense e, como se não bastasse, netos do ex-prefeito Manuel Abreu e de Dona Zaira, diretora do Grupo Escolar Apolinário Alegre, leitora voraz de Machado de Assis. Ou seja, para nossa desgraça, tínhamos que ser finíssimos, exemplo de educação, elegância e bom-comportamento para toda a cidade. Não entendo como, mas ninguém suspeitava de nossa bandidagem, capaz de loucuras como soltar uma galinha do mezanino no Cine Imperial, em pleno suspense do seriado na matinê de domingo. O mocinho amarrado nos trilhos do trem e aquele cá-cá-cá de penas voando em todas as direções, enquanto nosso primo Beto gritava "Fogo! Fogo!':
Nesse Natal - e olhando a foto, percebo que a árvore não era dessas de plástico de hoje, mas de pinheiro autêntico -, quando "Seo Fininho" chegou, nem eu nem Cláudio agüen¬távamos mais esperar. Hirtos, obedecendo às ordens de "olha o passarinho! agora, sem se mexer! não pisca, guri!” o jeito que encontrei de expressar o mau-humor foi arregalar os olhos. Meu irmão deixou cair os ombros de tanto rir. Tarde demais: "Seo Fininho" já tinha nos gravado para a posteridade.
Torturas de Natal (3)
Fico olhando os brinquedos a nossos pés. Engraçado, não lembro de quase nada, à exceção do carrinho de madeira com que transportei muita terra, fazendo cidades de areia no fun¬do do quintal e bonecos de barro que rachavam irremediavelmente quando colocados ao sol para secar. Na verdade, eu nem ligava muito para brinquedos. Já andava escrevendo algumas histórias, lendo Érico Veríssimo escondido, e tenho certeza que lembrava ainda do acontecido impressionante de dois anos antes. Foi no dia em que Getúlio Vargas suicidou-se, e eu perguntei a vovó, que chorava sem parar: "Vovó, o que é mesmo um presidente?" Ela respondeu: "E assim como uma espécie de pai de todo mundo': Até hoje, fiquei com isso na cabeça. A sensação de traição, naturalmente, tem sido medonha nos últimos 36 anos...
Mas, por trás das desilusões políticas, ficaram as fotos dos Natais, o presépio com casinha de papel, os galhos verdadeiros dos pinheiros, a certeza de que, naquela tarde, havia sol lá fora, e uma pergunta inquietante: o que será que a vida fez com o pobre do "Seo Fininho"?

Caio Fernando Abreu, escritor e jornalista, lançou, na Bienal do Livro, seu oitavo roman¬ce, Onde Andará Dulce Veiga?, pela Companhia das Letras

MEIO SILÊNCIO - CFA

Meio SilêncioÉ tempo de meio silêncio, de boca gelada e suspiro, de palavra indireta, aviso na esquina. Tempo de cinco sentidos num só. (Carlos Drummond de Andrade) Águas de vidro à luz doentia da madrugada. Um vidro verde e fino refletindo longe o tremor das luzes da cidade. Aproxima lento o próprio dedo da ponta acesa do cigarro até senti-lo retrair-se num afastamento involuntário. O rosto do outro também parece feito de vidro. Um vidro ainda mais frágil que o da madrugada. Tem a impressão que se sair caminhando o ar irá quebrar-se em ruídos e estilhaços. A lua está tão bonita que dói por dentro, fala. Depois retrai-se como o dedo não queimado. Sempre o medo de chegar perto demais, de não poder voltar atrás, pensa, e solta devagar a fumaça pelas narinas. "Quer ouvir música? meus dedos avançam até o rádio. Um gesto e três palavras para encher o silêncio. Que de tão repleto não cabe em si mesmo. Mas ele diz não. Sua resposta me enche de uma brusca vergonha. Como se tivesse descido mais fundo do que eu, dispensando as facilidades que também são fuga. A luz da lua bate nas pedras, elas brilham feito mil luas brancas, mil luas ásperas, mil luas à beira de um céu-rio sem estrelas. Está tudo quieto - há quanto tempo? - e meus ouvidos já não descosturam do silêncio o rumor dos carros passando distantes na estrada." Olham-se, mas não se vêem. A escuridão não é uma parede, mas o silêncio os imobiliza na busca da palavra maior. Os dois fumam. As pontas acesas desvendam o escuro, e por instantes colocam um brilho avermelhado nas pupilas de ambos.
Perguntou se eu queria ouvir música. Não, eu disse sem pensar. Então ele calou como se tivesse ficado ofendido por eu recusar alguma coisa sua. Desconhecidos: como isso é, a um só tempo, terrivelmente bom e terrivelmente assustador. Pensar que eu estava só, no bar, esperando nem sei que, nem sei sequer se esperando: de repente os olhos me buscando no balcão em frente. Verdes. No primeiro momento foi a única coisa que percebi. Verdes, os olhos, atrás da fumaça, no meio das gentes, na frente do espelho. E o espelho refletindo o meu espanto. Depois vi os cabelos, a boca, os ombros. Mas era nos olhos, só nos olhos, que se fixava aquele mudo apelo, aquele grito. Nem sei. Aquela clara maldição. Saí, saiu. Não dissemos nada. Eu só tenho esperas. Ele traz a tranqüilidade de mais nada esperar.

"Um menino. Aquele ar espantado. Um pouco trêmulo. Cigarro atrás de cigarro. Tenho medo de tocá-lo. De quebrá-lo."

Eu disse: a lua está tão bonita que dói por dentro. Ele não entendeu. É tudo tão bonito que me dói e me pesa. Fico pensando que nunca mais vai se repetir, é só uma vez, a única, e vai me magoar sempre. Não sei, não quero pensar. Neste espaço branco de madrugada e lua cheia, preciso falar, e mais do que falar, preciso dizer. Mas as palavras não dizem tudo, não dizem nada. O momento me esmaga por dentro. O espanto esbarra em paredes pedindo exteriorização.
Você vê? as pedras parecem luas também. Ou estrelas, ele diz. Chão de estrelas. Vamos pisar nos astros distraídos? Ele ri. Nesse segundo cheio de riso alguma coisa se adensa. Nossos pés pisam em pedras. Mas por cima dos sapatos, sinto que são frias e duras, e sei que seu significado está em nós, não nelas. Uma vontade que a manhã não venha nunca. Vai voltar a grande busca. As noites vazias. Amargura de estar esperando. Repetir mil vezes: não quero esperar. E a certeza de que esse não querer já traz implícitas as longas caminhadas, o olhar devassando os bares, a náusea, os olhares alheios, a procura, a procura: seus ombros largos, um jeito de quem pisa mesmo em luas, não em pedras.

As sombras se projetam alongadas na praia deserta. Rumor de carros e faróis que devassam a noite sem achar. Pára de súbito, o corpo ferido por um sentimento indefinível. Precisa falar, precisa dizer.

Afinal, não foi para enfiar pérolas que você me trouxe aqui: eu digo. Ele está a meu lado. Então me olha sério, por um instante abalado, depois ri e diz: desista. Positivamente o cinismo não fica bem em você. E se com essa citação só quer mostrar que já leu Sartre, eu também já li. Por que feri? Por que feriu? Por que estamos dizendo coisas que não sentimos nem queremos?
"Um menino assustado querendo mascarar o medo com a agressividade. Um menino. Curvo-me para ele. Tão esguio que meus braços o rodeariam por completo. Por um instante ele ficaria inteiro preso dentro dos meus limites."

O rosto dele próximo do meu. Mais adivinho do que vejo o verde dos olhos deslizando pelas órbitas. A sua mão toca no meu ombro, sobe pelo pescoço, me alcança a face, brinca com a orelha, alcança os cabelos. O seu corpo cola-se ao meu. A sua boca vem baixando devagar, vencendo barreiras, colando-se à minha, de leve, tão de leve que receio um movimento, um suspiro, um gesto, mesmo um pensamento. Estou em branco como a noite. Ele me abraça. Ele está perto.

Ergue o braço lentamente, afunda as mãos nos cabelos de outro. E de súbito um vento mais frio os faz encolherem-se juntos, unidos no mesmo abraço, na mesma espera desfeita, no memso medo. Na mesma margem.

Zero Grau de Libra

Ouvindo Moon Over Bourbon Street, do Sting.Sobre todos aqueles que continuam tentando, Deus, derrama teu Sol mais luminoso.Caio Fernando AbreuO Sol entrou ontem em Libra. E porque tudo é ritual, porque fé, quando não se tem, se inventa, porque Libra é a regência máxima de Vênus, o afeto, porque Libra é o outro (quando se olha e se vê o outro, e de alguma forma tenta-se entrar em alguma espécie de harmonia com ele), e principalmente porque Deus, se é que existe, anda destraído demais, resolvi chamar a atenção dele para algumas coisas. Não que isso possa acordá-lo de seu imenso sono divino, enfastiado de humanos, mas para exercitar o ritual e a fé - e para pedir, mesmo em vão, porque pedir não só é bom, mas às vezes é o que se pode fazer quando tudo vai mal.Nesse zero grau de Libra, queria pedir a isso que chamamos de Deus um olho bom sobre o planeta terra, e especialmente sobre a cidade de São Paulo. Um olho quente sobre aquele mendigo gelado que acabei de ver sob a marquise do cine Majestic; um olho generoso para a noiva radiosa mais acima. Eu queria o olho bom de Deus derramado sobre as loiras oxigenadas, falsíssimas, o olho cúmplice de Deus sobre as jóias douradas, as cores vibrantes. O olho piedoso de Deus para esses casais que, aos fins de semana, comem pizza com fanta e guaraná pelos restaurantes, e mal se olham enquanto falam coisas como: "você acha que eu devia ter dado o telefone da Catarina à Eliete? – e outro grunhe em resposta.Deus, põe teu olho amoroso sobre todos que já tiveram um amor, e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem. Derrama teu olho amável sobre as criancinhas demônias criadas em edifícios, brincando aos berros em playgrounds de cimento. Ilumina o cotidiano dos funcionários públicos ou daqueles que, como funcionários públicos, cruzam-se em corredores sem ao menos se verem – nesses lugares onde um outro ser humano vai-se tornando aos poucos tão humano quanto uma mesa.

Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV. Olha bem o rapaz que, absolutamente só, dez vezes repete Moon Over Bourbon Street, na voz de Sting, e chora. Coloca um spot bem brilhante no caminho das garotas performáticas que para pagar o aluguel dão duro como garçonetes pelos bares. Olha também pela multidão sob a marquise do Mappin, enquanto cai a chuva de granizo, pelo motorista de taxi que confessa não Ter mais esperança alguma. Cuida do pintor que queria pintar, mas gasta seu talento pelas redações, pelas agências publicitárias, e joga tua luz no caminho dos escritores que precisam vender barato seu texto- olha por todos aqueles que queria ser outra coisa qualquer a que não a que são, e viver outra vida se não a que vivem.

Não esquece do rapaz viajando de ônibus com seus teclados para fazer show na Capital, deita teu perdão sobre os grupos de terapia e suas elaborações da vida, sobre as moças desempregadas em seus pequenos apartamentos na Bela Vista, sobre os homossexuais tontos de amor não dado, sobre as prostitutas seminuas, sobre os travestis da República do Líbano, sobre os porteiros de prédios comendo sua comida fria nas ruas dos Jardins. Sobre o descaramento, a sede e a humildade, sobre todos que de alguma forma não deram certo (porque, nesse esquema, é sujo dar certo), sobre todos que continuam tentando por razão nenhuma – sobre esse que sobrevivem a cada dia ao naufrágio de uma por uma das ilusões.

Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio - Não. Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça. Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo dia sem desistir, envia teu Sol mais luminoso, esse zero grau de Libra. Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada.

Caio Fernando Abreu, n'O Estado de S. Paulo, 24/09/86.

SAPATINHOS VERMELHOS - cfa



Os Sapatinhos Vermelhos
Dançarás - disse o anjo
Dançarás com teus sapatos vermelhos
Dançarás de porta em porta
Dançarás, dançarás sempre.
Andersen: Os Sapatinhos Vermelhos

1
Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina - ela repetiu olhando-se bem nos olhos em frente ao espelho. Ou quando começa: certos sustos na boca do estômago. Como carrinho de montanha-russa, naquele momento lá no alto, justo antes de despencar em direção. Em direção a quê? Depois de subidas e descidas, em direção àquele insuportável ponto seco de agora.
Restava acender outro cigarro, e foi o que fez. No momento de dar a primeira tragada, apoiou a face na mão e, sem querer, esticou a pele sob o olho direito. Melhor assim, muito melhor. Sem aquele ar desabado de cansaço indisfarçável de mulher sozinha com quase quarenta anos, mastigou sem pausa e sem piedade. Com os dedos da mão esquerda, esticou também a pele debaixo de outro olho. Não, nem tanto, que assim parece japonesa. Uma japa, uma gueixa,isso é que fui. A putinha submissa a coreografar jantares à luz de velas. - Glenn Miller ou Charles Aznavour?-, vertendo trêfegos os sais - camomila ou alfazema? - na sua água da banheira, preparando uísques - uma ou duas pedras hoje, meu bem? Os Sapatinhos Vermelhos
Dançarás - disse o anjo
Dançarás com teus sapatos vermelhos
Dançarás de porta em porta
Dançarás, dançarás sempre.
Andersen: Os Sapatinhos Vermelhos

1
Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina - ela repetiu olhando-se bem nos olhos em frente ao espelho. Ou quando começa: certos sustos na boca do estômago. Como carrinho de montanha-russa, naquele momento lá no alto, justo antes de despencar em direção. Em direção a quê? Depois de subidas e descidas, em direção àquele insuportável ponto seco de agora.
Restava acender outro cigarro, e foi o que fez. No momento de dar a primeira tragada, apoiou a face na mão e, sem querer, esticou a pele sob o olho direito. Melhor assim, muito melhor. Sem aquele ar desabado de cansaço indisfarçável de mulher sozinha com quase quarenta anos, mastigou sem pausa e sem piedade. Com os dedos da mão esquerda, esticou também a pele debaixo de outro olho. Não, nem tanto, que assim parece japonesa. Uma japa, uma gueixa,isso é que fui. A putinha submissa a coreografar jantares à luz de velas. - Glenn Miller ou Charles Aznavour?-, vertendo trêfegos os sais - camomila ou alfazema? - na sua água da banheira, preparando uísques - uma ou duas pedras hoje, meu bem?
Nenhuma pedra, decidiu. E virou a garrafa outra vez no copo. Aprendera com ele, nem gostava antes. Tempo perdido, pura perda de tempo. E não me venha dizer mas que teve bons momentos, não teve não? A cabeça dele abandonada em seus joelhos, você deslizando devagar entre os cabelos daquele homem. Pudesse ver seu próprio rosto: nesses momentos você ganhava luz e sorria sem sorrir, olhos fechados, toda plena. Isso não valeu Adelina?

Bebeu outro gole um pouco sofrêga. Precisava apressar-se, antes que a quinta virasse Sexta-Feira Santa e os pecados começassem a pulular na memória feito macacos engaiolados: não beba, não cante, não fale nome feio, não use vermelho, o diabo está solto, leva sua alma para o inferno. Ela já estava lá, no meio das chamas, pobre alminha, nem dez da noite, só filmes sacros na tevê, mantos sagrados, aquelas coisas, Sexta-Feira da Paixão e nem sexo, nem ao menos sexo, isso de meter, morder, gemer, gozar, dormir. Aquela coisas frouxa, aquela coisa gorda, aquela coisa sob os lençóis,aquela coisa no escuro,roçar molhado de pêlos,baba e gemidos depois de - quantos mesmo? - cinco, cinco anos. Cinco anos são alguma coisa quando se tem quase quarenta, e nem apartamento próprio, nem marido, nem filhos, herança: nada. Ponto seco, ponto morto.

Ué, você não escolheu? Ele ficou parado à frente dela, muito digno e tão comportadamente um-senhor-de-família-da-Vila-Mariana dentro do terno suavemente cinza, gravata pouco mais clara, no tom exato das meias, sapato ligeiramente mais escuro. Absolutamente controlado. Nem um fio de cabelo fora do lugar enquanto repetia pausado, didático, convincente - mas Adelina, você sabe tão bem quanto eu, talvez até melhor, a que ponto de desgaste nosso relacionamento chegou. Devia falar desse jeito mesmo com os alunos, impossível que você não perceba como é doloroso para mim mesmo encarar esse rompimento. Afinal, a afeição que nutro por você é um fato.
Teria mesmo chegado ao ponto de dizer nutro? Teria, teria sim, teria dito nutro&relacionamento&rompimento&afeto, teria dito também estima&consideração&mais alto apreço e toda essa merda educada que as pessoas costumam dizer para colorir a indiferença quando o coração ficou inteiramente gelado. Uma estalactite - estalactite ou estalagmite? merda, umas caíam de cima, outras subiam de baixo, mas que importa: aquela lança fininha de gelo afiado - cravada com extrema cordialidade no fundo do peito dela. Vampira, envelheceria séculos lentamente até desfazer-se em pó aos pés impassíveis dele. Mas ao contrário, tão desamparada e descalça, quase nua, sem maquilagem nem anjo da guarda, dentro de uma camisola velha de pelúcia, às vésperas da Sexta-Feira Santa, sozinha no apartamento e no planeta Terra.

Esmagou o cigarro, baixou a cabeça como quem vai chorar. Mas não choraria mais uma gota sequer, decidiu brava, e contemplou os próprios pés nus. Uns pés pequenos, quase de criança, unhas sem pintura, afundados no tapetinho amarelo em frente à penteadeira. Foi então que lembrou dos sapatinhos. Na segunda-feira tentando reunir os fragmentos, não saberia dizer se teria mesmo precisado acender outro cigarro ou beber mais um gole de uísque para ajudar a idéia vaga a tomar forma. Talvez sim, pouco antes de começar a escancarar portas e gavetas de todos os armários e cômodas, à procura dos sapatos. Que tinham sido presente dele, meio embriagado e mais ardente depois de um daqueles fins de semana idiotas no Guarujá ou Campos do Jordão, tanto tempo atrás. Viu-se no espelho de má qualidade, meio deformada, uma mulher descabelada jogando caixas e roupas para os lados até encontrar, na terceira gaveta do armário, o embrulho em papel de seda azul-clarinho.
Desembrulhou cuidadosamente. Uma súbita calma. Quase bailarina em gestos precisos, medidos, elegantes. O silêncio completo do apartamento vazio quebrado apenas pelo leve farfalhar do papel de seda desdobrado sem pressa alguma. E eram lindos, mais lindos do que podia lembrar. Mais lindos do que tinha tentado expressar quando protestou, comedida e comovida - mas são tão... tão ousados, meu bem, não tem nada a ver comigo. Que evitava cores, saltos, pinturas, decotes, dourados ou qualquer outro detalhe capaz sequer de sugerir sua secreta identidade de mulher-solteira- e– independente-que-tem-um-amante-casado.

Vermelhos - mais que vermelhos: rubros, escarlates, sanguíneos - com saltos finos altíssimos, uma pulseira estreita na altura do tornozelo. Resplandeciam nas suas mãos. Quase cedeu ao impulso de calçá-los imediatamente, mas sabia instintiva que teria primeiro que cumprir o ritual. De alguma forma, tinha decorado aquele texto há tanto tempo que apenas o supunha esquecido. Como uma estréia adiada, anos. Bastavam as primeiras palavras, os primeiros movimentos, para que todas as marcas e inflexões se recompusessem em requintes de detalhes na memória. O que faria a seguir seria perfeito, como se encenado e aplaudido milhares de vezes.
Perfeitamente: Adelina colocou um disco - nem Charles Aznavour, nem Glenn Miller, mais uma úmida Billie Holiday, I’m glad, you’re bad, tomando o cuidado de acionar o botão para que a agulha voltasse e tornasse a voltar sempre, don’t explain , depois deixou a banheira encher aos poucos de suave água morna, salpicou os sais antes de mergulhar, com Billie gemendo rouca ao fundo, lover man, e lavou todos os orifícios, e também os cabelos, todos os cabelos, enfrentou o chuveiro frio, secou o corpo e cabelos enquanto esmaltava as unhas dos pés, das mãos, no mesmo tom de vermelho dos sapatos, mais tarde desenhou melhor a boca, já dentro do vestido preto justo, drapeado de crepe, preso ao ombro por um pequeno broche de brilhantes, escorregando pelo colo para revelar o início dos seios, acentuou com lápis o sinal na face direita, igualzinho ao de Liz Taylor, todos diziam, sublinhou os olhos de negro, escureceu os cílios, espalhou perfume no rego dos seios, nos pulsos, na jugular, atrás das orelhas, para exalar quando você arfar, minha filha, então as meias de seda negra transparente, costura atrás, tigresa noir, Lauren Bacall, e só depois de guardar na carteira, talão de cheques, documentos, chave do carro, cigarros e o isqueiro de prata que tirou da caixinha de veludo grená, presente de trinta e sete, só mesmo quando estava pronta dos pés à cabeça e desligara o toca-discos, porque eles exigiam silêncio - foi que sentou outra vez na penteadeira para calçar os sapatinhos vermelhos.

Apagou a luz do quarto, olhou-se no espelho de corpo inteiro do corredor. Gostou do que viu. Bebeu o último gole de uísque e, antes de sair, jogou na gota dourada do fundo do copo o filtro branco manchado de batom.
2
Eram três, estavam juntos, mas o negro foi o primeiro a pedir licença para sentar. A única mulher sozinha na boate. Tinha traços finos o negro, afilados como os de um branco, embora os lábios mais polpudos, meio molhados. Músculos que estavam dentro da camisa justa, dos jeans apertados. Leve cheiro de bicho limpo, bicho lavado, mas indisfarçavelmente bicho atrás do sabonete.

- E aí, passeando? - ele perguntou, ajeitando-se na cadeira à frente dela.

Curvou-se para que ele acendesse seu cigarro. A mão grande, quadrada, preta e forte não se moveu sobre a mesa. Ela mesma acendeu, com o isqueiro de prata. Depois jogou a cabeça para trás - a marcação era perfeita - tragou fundo e, entre a fumaça, soltou as palavras sobre os patéticos pratinhos de plástico com amendoim e pipocas:

- Você sabe, feriado. A cidade fica deserta, essas coisas. Precisa aproveitar, não?

Por baixo da mesa, o negro avançou o joelho entre as coxas dela. Cedeu um pouco, pelo menos até sentir o calor aumentando. Mas preferiu cruzar as pernas estudada. Que não assim, tão fácil, só porque sozinha. E quase quarentona, carne de segunda, coroa. Sorriu para o outro, encostado no balcão, o moço dourado com jeito de tenista. Não que fosse louro, mas tinha aquele dourado do pêssego quando mal começa a amadurecer espalhado na pele, nos cabelos, provavelmente nos olhos que ela não conseguia ver sem óculos, à distância. O negro acompanhou o seu olhar , virando a cabeça sobre o próprio ombro. De perfil - ela notou - o queixo era brusco, feito a machado. Mesmo recém – feita, a barba rascaria quando se passasse a mão. Antes que dissesse qualquer coisa, ela avançou com voz muito rouca:
- Por que não convida seus amigos para sentar com a gente? - Ele rodou um amendoim entre os dedos. Ela tomou o amendoim dos dedos dele. O crepe escorregou do ombro para revelar o vinco entre os dois seios - Acho que você não precisa disso.

O negro franziu a testa. Depois riu. Passou o indicador nas costas da mão dela, pressionando:

- Pode crer que não.

Soprou a fumaça na cara dele:

- Será?
- Garanto a você.

Descruzou as pernas. O joelho dele tornou a apertar o interior de suas coxas. Quero te jogar no solo a música dizia.

- Então chame seus amigos.
- Você não prefere que a gente fique só nós dois?

Tão escuro ali dentro que mal se podia ver o outro, ao lado do tenista dourado. Um pouco mais baixo, talvez. Mas os ombros largos. Qualquer coisa no porte, embora virado de costas para ela, de frente para o balcão, curvado sobre o copo de bebida, qualquer coisa na bunda firme desenhada, pelo pano da calça --- qualquer coisa ali prometia. Remexeu as pedras de gelo do uísque na ponta das unhas vermelhas.
- Uns rapazes simpáticos. Assim sozinhos. Não são seus amigos?
- Do peito - ele confirmou. E apertou mais o joelho. A calcinha dela ficou úmida - Tudo gente boa.
- Gente boa é sempre bem-vinda
Falava como a dublagem de um filme. Uma mulher movia o corpo e a boca: ela falava. Um filme preto e branco, bem contrastado, um filme que não tinha visto, embora conhecesse bem a história. Porque alguém contara, em hora de cafezinho, porque vira os cartazes ou lera qualquer coisa numa daquelas revistas femininas que tinha aos montes em casa. As mais recentes, na parte de baixo da mesinha de vidro da sala. As outras acumuladas no banheiro de empregada, emboloradas por um eterno vazamento no chuveiro, que a diarista depois levava. Para vender, dizia. E ela odiava contida a idéia das páginas coloridas das revistas dela embrulhando peixe na feira ou expostas naquelas bancas vagabundas do centro da cidade.

Se você quer mesmo - o negro disse. E esperou que ela dissesse alguma coisa, antes de erguer a mão chamando os outros dois.

- Não quero outra coisa - sussurrou.

E muito de repente - porque depois do quarto ou quinto uísque tudo acontece sempre assim, sem que se possa determinar o ponto exato de transição, quando uma situação passa a ser outra situação - quase de repente, o tenista dourado estava ao lado direito dela, e o rapaz mais baixo à sua esquerda. Na cadeira em frente, o negro olhava tudo e com atentos olhos suspeitosos. Perguntou o que bebiam, eles disseram juntos e previsíveis: cerveja. Ela falou nossa, bebam algum drinque mais estimulante, vocês vão precisar, rapazes, um ar de Mae West. Todos os três explicaram que estavam duros, a crise, você sabe, mas de jeitos diferentes. O tenista dourado chegou a puxar o forro do bolso para fora e mostrou, pegando a mão dela, veja, veja só, pegue aqui, mas ela retirou a mão pouco antes de tocar. Tão próximo o calor latejante na beira dos dedos. Problema nenhum, ofereceu pródiga: eu pago.
A fita da garrafa pela metade, serviu do uísque dela ao negro e ao tenista-dourado. Não ao mais baixo, que preferia vodca, natasha mesmo serve. Ela então atentou nele pela primeira vez. Todo pequeno e forte, cabelos muito crespos, contrastando com a pele branca, lábios vermelhos, barba de dois, três dias, quase emendada nos cabelos do peito fugidos da gola da camisa, mãos cruzadas um tanto tensas, unhas roídas, sobre o xadrez da toalha. Cabeça baixa, concentrado em sua pequenez repleta da vitalidade que certeira, ela adivinhava mesmo antes de provar.

Pacientes, divertidos, excitados: cumpriram os rituais necessários até chegar ao ponto. Que o negro era Áries, jogador de futebol, mês que vem passo ao primeiro escalão, ganhando uma grana. Sérgio ou Sílvio, qualquer coisa assim. O tenista-dourado, Ricardo, Roberto ou seria Rogério? Um bancário sagitariano, fazia musculação e os peitos que pediu que tocasse eram salientes e pétreos como os de um halterofilista, sonhava ser modelo, fiz até umas fotos, quiser um dia te mostro, peladinho, e ela pensou: vai acabar michê de viado rico. Do mais baixo só conseguiu arrancar o signo, Leão, isso mesmo porque adivinhou, não revelou nome nem disse o que fazia, estava por aí, vendo qual era, e não tinha saco de fazer de social.

Eu? Gil-da, ela mentiu retocando o batom. Mas mentia só em parte, contou para o espelhinho, porque de certa forma sempre fui inteiramente Gilda, Escorpião, e nisso dizia a verdade, atriz, e novamente mentia, só de certa forma, porque toda a minha vida.

Então dançaram, um de cada vez. O negro apoiou a mão pesada na cintura dela e, puxando – a para si, encaixou o ventre dos dois, quase como se a penetrasse assim. Ao som de Roberto Carlos daqueles de motel, o côncavo, o convexo, tão apertado e rijo que ela temeu que molhasse a calça. Mas de volta à mesa, ao acariciar disfarçada o volume, tranqüilizou-se antes de sair puxada pela mão dourada do tenista-dourado.
Que a fez encostar a cabeça entre os dois peitos dele, cheiro de colônia, desodorante, suor limpo de homem embaixo da camisa pólo amarelinha, lambeu a orelha dela, mordiscou a curva do pescoço ao som duma dessas trilhas românticas em inglês de telenovela, até que ela gemesse, toda molhada, implorando que parasse. O mais baixo não quis dançar. Quero foder você, rosnou: pra que essa frescura toda?

Foi quando ela levantou a perna, apoiando o pé na borda da cadeira, que todos viram o sapato vermelho. Depois dos comentários exaltados, as meticulosas preparações estavam encerradas, a boate quase vazia, sexta-feira instalada, era da Paixão, cinza cru de amanhecer urbano entrando pelas frestas, o único garçom impaciente, cadeiras sobre as mesas. Tinham chegado ao ponto. O ponto vivo, o ponto quente.

- Pra onde? - perguntou o tenista-dourado.
- Meu apartamento, onde mais?- ela disse, terminando de assinar o cheque, três estrelas, caneta importada.
- Mas afinal, com quem você quer ir?- o negro quis saber.
Ela acariciou o rosto mais baixo:
- Com os três, ora.

Apesar do uísque, saiu pisando firme nos sapatos vermelhos, os três atrás. Lá fora, na luz da manhã, antes de entrarem no carro que o manobrista trouxe e o tenista-dourado fez questão de dirigir, os sapatos vermelhos eram a única coisa colorida daquela rua.

3
Que tirasse tudo, menos os sapatos - os três imploraram no quarto em desordem. Garrafa de uísque na penteadeira. Fafá de Belém antiga no toca-discos (escolha do tenista-dourado, o negro queria Alcione), cinzeiro transbordante na mesinha de cabeceira. Tirou tudo, jogando para os lados. Menos a meia de seda negra, com costura atrás, e os sapatinhos vermelhos. Nua, jogou-se na colcha de chenile rosa, as pernas abertas. Eles cercaram lentos, jogando as zorbas sobre o crepe negro.
O negro veio por trás, que gostava assim, tão apertadinho. Ela nunca tinha feito, mas ele jurou no ouvido que seria cuidadoso, depois mordeu-a nos ombros, enquanto a virava de perfil, muito suavemente, molhando-a de saliva com o dedo, para que o mais baixo pudesse continuar a lambe-la entre as coxas, enquanto o tenista-dourado, de joelhos, esfregava o pau pelo rosto dela, até encontrar a boca. Tinha certo gosto também de pêssego, mas verde demais, quase amargo, e passando as mãos pelas costas dele confirmou aquela suspeita anterior de uma penugem macia num triângulo pouco acima da bunda, igual ao peito, acinzentado pelo amanhecer varando persianas, mas certamente dourado à luz do sol. Foi quando o negro penetrou mais fundo que ela desvencilhou-se do tenista-dourado para puxar o mais baixo sobre si. Ele a preencheu toda, enquanto ela tinha a sensação estranha de que, ponto remoto dentro dela, dos dois lados de uma película roxa de plástico transparente, como num livro que lera, os membros dos dois se tocavam, cabeça contra cabeça. E ela primeiro gemeu, depois debateu-se, procurou a boca dourada do tenista – dourado e quase, quase chegou lá. Mas preferia servir mais um uísque, fumar mais um cigarro, sem pressa alguma, porque pedia mais, e eles davam, generosos, e absolutamente não se espantar quando então invertiam-se as posições, e o tenista-dourado vinha por trás ao mesmo tempo que o mais baixo introduzia-se em sua boca, e o negro metido dentro dela conseguia transformar os gemidos em gritos cada vez mais altos, fodam-se os vizinhos, depois cada vez mais baixo novamente, rosnandos, grunhindos, até não passarem de soluço miudinhos, sete galáxias atravessadas, o sol de Vegas no décimo quarto grau de Capricórnio e a cara afundada nos cabelos pretos encaracolados do negro peito largo dele. De outros jeitos, de todos os jeitos: quatro,cinco vezes. Em pé, no banheiro, tentando aplacar-se embaixo da água fria do chuveiro. Na sala, de quatro nas almofadas de cetim, sobre o sofá, depois no chão.
Na cozinha, procurando engov e passando café, debruçada na pia. Em frente ao espelho de corpo inteiro do corredor, sem se chocar que o mais baixo de repente viesse também por trás do tenista-dourado dentro dela, que acariciava o pau do negro até que espirrasse em jatos sobre os sapatos vermelhos dela, que abraçava os três, e não era mais Gilda, nem Adelina nem nada. Era um corpo sem nome, varado de prazer, coberto de marcas de dentes e unhas, lanhados de tocos de barbas amanhecidas, lambuzadas de leite sem dono dos machos das ruas. Completamente satisfeita. E vingada.

Quando finalmente se foram, bem depois do meio-dia, antes de jogar-se na cama limpou devagar os sapatos com uma toalha de rosto que jogou no cesto de roupa suja. Foi o néon, repetiu andando pelo quarto, aquelas luzes verdes, violetas e vermelhas piscando em frente à boate, foi o néon maligno da Sexta-Feira Santa, quando o diabo se solta porque Cristo está morto, pregado na cruz. Quando apagou a luz, teve tempo de ver-se no espelho da penteadeira, maquilagem escorrida pelo rosto todo, mas um ar de triunfo escapando do meio dos cabelos soltos.

Acordou no Sábado de Aleluia, manhã cedo, campainha furando a cabeça dolorida. Ele estava parado no corredor, dúzia de rosas vermelhas e um ovo de Páscoa nas mãos, sorriso nos lábios pálidos. Não era preciso dizer nada. Só sorrir também. Mas ela não sorria quando disse:

- Vai embora. Acabou.
Ele ainda tentou dizer alguma coisa, aquele ridículo terno cinza. Chegou mesmo a entrar um pouco na sala antes que ela o empurrasse aos gritos para fora, quase inteiramente nua, a não ser pelas meias de seda e os sapato vermelhos de saltos altíssimos. Havia um cheiro de cigarro e bebida e gozo entranhado pelos cantos do apartamento, a cara ressacada dela, manchas roxas de chupões no colo. Pela primeira, única e última vez ele a chamou muitas vezes de puta, puta vadia, puta escrota depravada e pervertida. Jogou o ovo e as rosas vermelhas na cara dela e foi embora para sempre.

Só então ela sentou para tirar os sapatos. Na carne dos tornozelos inchados, as pulseiras tinham deixado lanhos fundos. Havia ferimentos espalhados sobre os dedos. Tomou banho quente, arrumou a casa toda antes de deitar-se outra vez - o broche de brilhantes tinha desaparecido, mas que importava: era falso -, tomar dois comprimidos para dormir o resto do sábado e o domingo de Páscoa inteiros, acordando para comer pedaços de chocolate de ovo espatifado na sala.

Segunda-feira no escritório, quando a viram caminhando com dificuldade, cabelos presos, vestida de marrom, gola fechada, e quiseram saber o que era - um sapato novo, ela explicou muito simples, apertado demais, não é nada. Voltavam a doer, os ferimentos, quando ameaçava chuva.E ao abrir a terceira gaveta do armário para ver o papel de seda azul – clarinho guardando os sapatos, sentia um leve estremecimento. Tentava - tentava mesmo? - não ceder. Mas quase sempre o impulso de calçá-los era mais forte. Porque afinal, dizia-se, como num conto de Sonia Coutinho, há tantas sextas-feiras, tantos luminosos de néon, tantos rapazes solitários e gostosos perdidos nesta cidade suja... Só pensou em joga-los fora quando as varizes começaram a engrossar, escalando as coxas, e o médico então apalpou-a nas virilhas e depois avisou quê.

mais trechos de caio

"Abraçou-o também, que vinha de muito longe, que mal se conheciam, um bicho arisco, abraçou-o com muita força, como se quisesse entrar dentro dele para poder compreendê-lo mais, e melhor."

[Pela noite]
"Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços."

"Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever um carta tão desesperada mas tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa."



[Metâmeros]
"É fácil morrer. A toda hora, em todos os lugares, a morte está se oferecendo. Mais difícil é continuar vivendo. Eu continuo. Não sei se gosto, mas tenho uma curiosidade imensa pelo que vai me acontecer, pelas pessoas que vou conhecer, por tudo que vou dizer e fazer e ainda não sei o que será."

"As palavras traem o que a gente sente."

"Há pessoas que nascem para serem sós a vida inteira. Eu, por exemplo. (...) Freqüentemente me assusto, pensando que a vida vai acabar sem que eu encontre um grande amor ou uma grande amizade, ou mesmo uma grande vocação que justifique esse isolamento."

[Limite branco]

"É fácil morrer. A toda hora, em todos os lugares, a morte está se oferecendo. Mais difícil é continuar vivendo. Eu continuo. Não sei se gosto, mas tenho uma curiosidade imensa pelo que vai me acontecer, pelas pessoas que vou conhecer, por tudo que vou dizer e fazer e ainda não sei o que será."

"As palavras traem o que a gente sente."

"Há pessoas que nascem para serem sós a vida inteira. Eu, por exemplo. (...) Freqüentemente me assusto, pensando que a vida vai acabar sem que eu encontre um grande amor ou uma grande amizade, ou mesmo uma grande vocação que justifique esse isolamento."

[Limite branco]


"Ah, era a vontade de magoar a si mesmo, ele, que magoava tanto os outros.
Era a vontade de destruir-se para provar que se pertencia, que aquela caixa
Com dois braços e duas pernas era o seu corpo e ele poderia fazer o que bem entendesse.
Mas provar a quem? E para quê?"

"Não estava triste. Era como se, de repente, tivesse constadado que vivia,
E que aquilo nada mais era do que um capítulo de sua vida.
Encerrado."

"Ás vezes, relendo as coisas que eu mesmo escrevo, tenho a impressão que nasceram de um outro Maurício.
Um Maurício muito velho, desiludido e amargo. Levanto, vou até o espelho, investigo meu rosto. Ele não tem rugas, nem sulcos, nem mesmo a sombra de uma tristeza muito funda. É um rosto de animal jovem; um rosto de dezenovo anos, que ainda não viu nada, que ainda não sentiu nada e, principalmente, que ainda não sabe nada. Mas por detrás dele eu sinto o outro, O outro que um dia vai vir à tona, talvez sem sequer anunciar a própria chegada. Ah, nesse dia eu levantarei bem cedo, e olhando meus traços refletidos neste mesmo vidro, descobrirei, no fundo dos olhos amassados pelo sono, uma luz nova; descobrirei como que uma aura em torno dos cabelos despenteados e dps dentes ainda não escovados. 'Chegou', pensarei. E tudo será diferente. Ou não?"
*Sei q fico grande, mas deu dó cortar no meio...

Todos os trechos, tirados do livro Limite Branco,1970.


"Fico me perdendo em páginas de diários, em pensamentos e temores, e o tempo vai passando. Covardia é uma palavra feia. Receio de enfrentar a vida cara a cara. Descobri que não me busco ou, se me busco, é sem vontade nenhuma de me achar, mudando o caminho cada vez que percebo uma luz. Fuga, o tempo todo fuga, intercalada por períodos de reconhecimento."

"Quero ser eu mesmo. Será difícil? Com tudo de mau que isso possa trazer. (...) É preciso agora concretizar a idéia: tirá-la dos limites do pensamento, arrancá-la apenas do papel e torná-la um pedaço de mim, decisão cravada no corpo."

Limite branco]

"Bem sei que gostarias. Mas não te colocarão na cruz, querido. Quanta vaidade, quanto palavreado tolo, quanta culpa idiota."

['Dodecaedro', TRIÂNGULO DAS ÁGUAS]

"Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho

"Nós continuávamos resistindo mas às vezes penso que viver não deve ser apenas isso, segurar a barra."


(Dispersos - Caio 3D)

Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei.
Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.
Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.

"Deixara o telefone do bar, o endereço, a hora que estaria ali. Um detalhado roteiro, feito dissesse dissimulado estou esperando, você pode me encontrar. Ah como doía manter-se assim disponível, completamente em branco para a procura."

(Inventário do Ir-remediável » Inventário do Ir-remediável)

"Na minha memória - já tão congestionada - e no meu coração - tão cheio de marcas e poços - você ocupa um dos lugares mais bonitos."

"A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão."

(Lixo e Purpurina

"Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha quando faz amor"


[Terça-feira gorda, MORANGOS MOFADOS]

"Mas te investigo, te busco, te suspeito cúmplice de mim, não dele, porque a tua ajuda é a única que posso esperar, então insisto sempre se me entendes, e volto a perguntar então, me entendes? assim, me entendes, tu? agora, me entendes, ou nunca?"

"Meus dias são sempre como uma véspera de partida."

"Nada modificará o estar das coisas no mundo, e a minha partida ontem, hoje ou amanhã, não mudará coisa alguma."



[Eu, tu, ele, MORANGOS MOFADOS] "E nada restava daquelas pessoas. Nem mesmo poeira que o vento soprasse."


[Divagações de uma marquesa, PEDRAS DE CALCUTÁ]

"Como se tivesse com a cabeça inteira dentro d’água e alguém começasse a tocar realejo na beira do rio. Pequenas bolhas de som explodiam sem choque contra seus ouvidos, nota após nota, até formar-se também por dentro aquela melodia tão remota e lenta que parecia vir não mais da margem, mas do fundo."

[Caixinha de música, MORANGOS MOFADOS]

"tento fugir para longe e a cada noite, como uma criança temendo pecados, punições de anjos vingadores com espadas flamejantes, prometo a mim mesmo nunca mais ouvir, nunca mais ter a ti tão mentirosamente próximo."

(Dragões Não Conhecem o Paraíso » À Beira do Mar Aberto)

"Que bom se fôssemos cavalos e corrêssemos por um campo de trigo, com papoulas nas margens."

"Um cego vê mais que um homem comum porque não precisa olhar para fora de si, porque o que ele deseja ver está completamente dentro e é inteiramente seu."

[A chave e a porta, INVENTÁRIO DO IR-REMEDIÁVEL]

"Você sabe que vai ser sempre assim. Que essa queda não é a última. Que muitas vezes você vai cair e hesitar no levantar-se, até uma próxima queda."


[Inventário do ir-remediável, INVENTÁRIO DO IR-REMEDIÁVEL]

"Malas, hotéis. E os amigos, cadê? Você foi lindo comigo. E distante. Me deu apoio, não o ombro. Queria tanto ter chorado a dor enorme de POA e a velhice de meus pais no Menino Deus no ombro de um amigo. Não temos tempo: somos maduros. Onde será que isso começa?"

[Cartas, a Luciano Alabarse]


"no meu demente exercício para pisar no real, finjo que não fantasio. e fantasio, fantasio. até o último momento esperei que você me chamasse pelo telefone. que você fosse ao aeroporto. casablanca, última cena."

[cartas]

"Teria mesmo chegado ao ponto de dizer nutro? Teria, teria sim, teria dito nutro & relacionamento & rompimento & afeto, teria dito também estima & consideração & mais alto apreço e toda essa merda educada que as pessoas costumam dizer para colorir a indiferença quando o coração ficou inteiramente gelado."

em Os Sapatinhos Vermelhos.

"Quero fazer um feitiço para que nada mais volte a andar. Quero ficar assim, no parado. Sei com medo que o que trouxe você aqui foi esse meu jeito de ir vivendo como quem pula poças de lama, sem cair nelas, mas sei que agora esse jeito se despedaça."

Anotações sobre um romance urbano

"Olha, eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. Eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não me deixam, você não me deixa"

"Carta para além do muro"

Extremos da paixão
... Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolo sem face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar ...

"Derramei três lágrimas: a primeira escorreu pela face e perdeu-se na bôca; a segunda morreu achatada contra o assoalho; a terceira caiu na tua mão. E foi a que mais doeu".

Mamutes Margarida Madrugada - Inventário do Irremediável

"Nada mais distanciado do que o que está por perto, porque o que está longe se faz compacto numa atitude assumida frente ao que já aconteceu;"

Mamutes Margarida Madrugada - Inventário do Irremediável

"Parece-me agora, tanto tempo depois, que as partidas-dolorosas, as amargas separações, as perdas-irreparáveis costumam lavrar assim o rosto dos que ficam."

[O marinheiro, TRIÂNGULO DAS ÁGUAS]

"Não gosto quando a gente fica falando assim no que não foi, no que poderia ter sido. God! Não aos sábados, principalmente a noite. Não hoje, por favor, hoje não dá, eu tenho. Eu tenho uma sensação meio de amargura, de fracasso. Você me entende? Como se tivesse a obrigação de ter sido, ou tentado ser, outra pessoa."

[Pela noite, TRIÂNGULO DAS ÁGUAS]


"Quando estava meio bêbado assim emergia, vinha à tona, mas não estava limpo, todo melado de emoções informuláveis, saudades impossíveis, tinha vontade de pedir que ficassem com ele, que o colocassem no colo, na cama, que lhe dessem chá ou leite quente e repetissem que tudo ia ficar bem, que amanhã haveria sol, e não teria ressaca nem precisaria trabalhar e todas as dívidas estariam saldadas e receberia todas as cartas, todos os telefonemas que esperava inutilmente havia meses, havia anos, uma vida inteira esperando o que não vinha."

[Pela noite, TRIÂNGULO DAS ÁGUAS]

"As pessoas suportam tudo, as pessoas às vezes procuram exatamente o que será capaz de doer ainda mais fundo, o verso justo, a música perfeita, o filme exato, punhaladas revirando um talho quase fechado, cada palavra, cada acorde, cada cena, até a dor esgotar-se autofágica, consumida em si mesma, transformada em outra coisa que não saberia dizer qual era."


[Pela noite, TRIÂNGULO DAS ÁGUAS]

Às vezes me espanto e me pergunto como pudemos a tal ponto mergulhar naquilo que estava acontecendo, sem a menor tentativa de resistência. Não porque aquilo fosse terrível, ou porque nos marcasse profundamente ou nos dilacerasse - e talvez tenha sido terrível, sim, é possível, talvez tenha nos marcado profundamente ou nos dilacerado - a verdade é que ainda hesito em dar um nome àquilo que ficou, depois de tudo. Porque alguma coisa ficou.


{do outro lado da tarde}