domingo, agosto 28, 2011

Biruta - Lygia Fagundes Telles

Conto Canino


Biruta

Lygia Fagundes Telles

Alonso foi para o quintal carregando uma bacia cheia de louça suja. Andava cm dificuldade, tentando equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus bracinhos finos.

- Biruta, eh, Biruta! - chamou sem se voltar.

O cachorro saiu de dentro da garagem. Era pequenino e branco, uma orelha em pé e a outra completamente caída.

- Sente-se aí, Biruta, que vamos ter uma conversinha - disse Alonso pousando a bacia ao lado do tanque. Ajoelhou-se, arregaçou as mangas da camisa e começou a lavar os pratos.

Biruta sentou-se muito atento, inclinando interrogativamente a cabeça ora para a direita, ora para a esquerda, como se quisesse apreender melhor as palavras do seu dono. A orelha caída ergueu-se um pouco, enquanto a outra empinou, aguda e ereta. Entre elas, formaram-se dois vincos, próprios de uma testa franzida do esforço de meditação.

- Leduína disse que você entrou no quarto dela - começou o menino num tom brando. - E subiu em cima da cama e focinhou as cobertas e mordeu uma carteirinha de couro que ela deixou lá. A carteira era meio velha e ela não ligou muito. Mas se fosse uma carteira nova, Biruta! Se fosse uma carteira nova! Me diga agora o que é que ia acontecer se ela fosse uma carteira nova!? Leduína te dava uma surra e eu não podia fazer nada, como daquela outra vez que você arrebentou a franja da cortina, lembra? Você se lembra muito bem, sim senhor, não precisa fazer essa cara de inocente!...

Biruta deitou-se, enfiou o focinho entre as patase baixou a orelha. Agora, ambas as orelhas estavam no mesmo nível, murchas, as pontas quase tocando o chão. Seu olhar interrogativo parecia perguntar:

"Mas o que foi que eu fiz, Alonso? Não me lembro de nada..."

- Lembra sim senhor! E não adianta ficar aí com essa cara de doente, que não acredito, ouviu? Ouviu, Biruta?! - repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos. Com um gesto irritado, arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos. Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha as mãos de velho

- Alonso, anda ligeiro com essa louça! - gritou Leduína, aparecendo por um momento na janela da cozinha. - Já está escurecendo, tenho que sair!

- Já vou indo - respondeu o menino enquanto removia a água da boca. Voltou-se para o cachorro. E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se emendava, por que? Por que razão não se esforçava um pouco para ser melhorzinho? Dona Zulu já andava impaciente. Leduína também. Biruta fez isso, Biruta fez aquilo...

Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou desesperada, vinham visitas para o jantar, precisava encher os pastéis, "Alonso, você não viu onde deixei a carne?" Ele estremeceu. Biruta! Disfarçadamente, foi à garagem no fundo do quintal, onde dormia com o cachorro num velho colchão metido num ângulo de parede. Biruta estava lá deitado bem em cima do travesseiro, com a posta de carne entre as patas, comendo tranquilamente. Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se à dona Zulu que a carne desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava fechado, "o que é que eu faço, dona Zulu?"

Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel já todo roto que a envolvia e entrou com a posta na mão

- Está aqui Leduína.

- Mas falta um pedaço!

- Esse pedaço eu tirei pra mim. Eu estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você foi na quitanda.

- Mas por que você escondeu o resto? - perguntou a patroa, aproximando-se

- Por que fiquei com medo.

Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar mais.

- Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãzinho!

Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando, piscando os olhinhos ternos. "Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal."

Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos.

Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a carteira de dona Zulu?

- Hem, Biruta?! E se fosse a carteira de dona Zulu?

Já desinteressado, Biruta mascava uma folha seca.

- Por que você não arrebenta minhas coisas? - prosseguiu o menino elevado a voz. - Você sabe que tem todas as minhas pra morder, não sabe? Pois agora não te dou presente de Natal, está acabado. você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai ver!...

Girou sobre os calcanhares, dando as costas ao cachorro. Resmungou ainda enquanto empilhava a louça na bacia. Em seguida, calou-se, esperando qualquer reação por parte do cachorro. Como a reação tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo. Biruta dormia profundamente.

Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso? Não fazia nada por mal, queria só brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva de crianças?

Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do menino. "Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse, Leduína tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que nem uma criancinha. Ah Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pêlo e as duas orelhas de pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!"

- Alonso! - Era a voz de Leduína. - Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia. Já está quase noite, menino.

Alonso ergueu-se afobadamente. Mas antes de pegar a bacia meteu a mão na água e espargiu-a no focinho do cachorro.

- Chega de dormir, seu vagabundo!

Biruta abriu os olhos, bocejou com um ganido e levantou-se, estirando as patas dianteiras, num longo espreguiçamento.

O menino equilibrou penosamente a bacia na cabeça. Biruta seguiu-o aos pulos, mordendo-lhe os tornozelos, dependurando-se com os dentes na barra do seu avental.

- Aproveita, seu bandidinho! - riu-se Alonso. - Aproveita que eu estou com a mão ocupada, aproveita!

Assim que colocou a bacia na mesa, ele inclinou-se para agarrar o cachorro. Mas Biruta esquivou-se, latindo. O menino vergou o corpo sacudido pelo riso.

- Aí, Leduína que o Biruta judiou de mim!...

A empregada pôs-se guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe uma caçarola com batatas:

- Olhaí para o seu jantar. Tem ainda arroz e carne no forno.

- Mas só eu vou jantar? - surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.

- Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.

Alonso inclinou-se. E espiou apreensivo para debaixo do fogão. Dois olhinhos brilharam no escuro: Biruta estava lá. Alonso suspirou. Era bom quando Biruta resolvia se sentar! Melhor ainda quando dormia. Tinha então a certeza de que não estava acontecendo nada. A

trégua. Voltou-se para Leduína.

- O que o seu filho vai ganhar?

- Um cavalinho - disse a mulher. A voz suavizou. - Quando ele acordar amanhã, vai encontrar o cavalinho dentro do sapato dele. Vivia me atormentado que queria um cavalinho, que queria um cavalinho...

Alonso pegou uma batata cozida, morna ainda. Fechou-a nas mãos arroxeadas.

- Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moços com uns saquinhos debalas e roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu sapato, um casaquinho de malhae uma camisa.

- Por que ela não ficou com você?

- Ela disse uma vez que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...

Deixou cair na caçarola a batata já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno a vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma expressão dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo? Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas " a madrinha". Intilmente a preocurava entre as moças que apareciam no fim do ano com os pacotes de pesentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da festa, quando então se reunia aos meninos da capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo!



"... O bom jesus é quem nos traz

A mensagem de amor e alegria"...

- Também é muita responsabilidade tirar crianças para criar! - disse Leduína desamarrando o avental. - Já chega os que a gente tem...

Alonso baixou o olhar. E de repente sua fisionomia iluminou-se. Puxou o cachorro pelo rabo. Riu-se:

-Eh, Biruta! Está com fome, Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!... Sabe, Leduína, Biruta também vai ganhar um presente que está escondido lá debaixo do meu travesseiro. Com aquele dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma bolinha de borracha, uma beleza de bola! Agora dele não vai precisar mais morder suas coisas, tem a bolinha só pra isso. Ele não vai mais mexer em nda, sabe, Ledeuína?

- Hoje cedo ele não esteve no quarto da dona Zulu?

O menino empalideceu.

- Só se foi na hora em que fui lavar o automóvel... Por que Leduína? Por quê? Que foi que aconteceu?

Ela hesitou. E encolheu os ombros.

- Nada. Perguntei à toa.

A porta abriu-se bruscamente e a patroa apareceu. Alonso encolheu-se um pouco. Sondou a fisionomia da mulher. Mas ela estava sorridente. O menino sorriu também.

- Ainda não foi pra sua festa, Leduína? - perguntou a moça num tom afável. Abotoava os punhos do vestido de renda. - Pensei que você já estivesse saído... - E antes que a empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: - Então? Preparando seu jantarzinho?

O menino baixou a cabeça. Quando ela lhe falava assim mansamente, ele não sabia o que dizer.

- O Biruta está limpo, não está? - Prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer uma carícia na cabeça do cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e escondeu-se debaixo do fogão.

Alonso tentou encobrir-lhe a fuga:

- Biruta, Biruta! Cachorro mais bobo, deu agora de se esconder... - Voltou-se para a patroa. E sorriu desculpando-se: - Até de mim ele se esconde.

A mulher passou mão no ombro do menino:

- Vou a uma festa onde tem um menino assim do seu tamanho. Ele adora cachorros. Então me lembrei de levar o Biruta emprestado só por esta noite. O pequeno está doente, vai ficar radiante, o pobrezinho. Você empresta seu Biruta só por hoje, não emnpresta? O automóvel ja está na porta. Ponha ele lá que já estamos de saída.

O rosto do menino resplandeceu num sorriso. Mas então era isso?!... Dona Zulu pedido o Biruta emprestado, precisando do Biruta!... Abriu a boca para dizer-lhe que sim, que o Biruta estava limpinho, e que ficaria contente de emprestá-lo para o menino doente, estava muito contente com isso... Mas sem dar-lhe tempo de responder, a mulher saiu apressadamente da cozinha.

- Viu, Biruta? Você vai numa festal - exclamou Alonso, beijando repetidas vêzes o focinho do cachorro. - Você vai numa festa, seu sem-vergonha! Numa festa com crianças, com doces. com tudo! Mas pelo amor de Deus, tenha juizo, nada de desordens! Se você se comportar, amanhã cedinho te dou uma coisa. Vou te esperar acordado, hem? Tem um presente no seu sapato ... - acrescentou num sussurro, com a boca encostada na orelha do cachorro. Apertou-lhe a pata. - Te espero acordado, Biru ... Mas não demore muito!

O patrão já estava na direção do carro. Alonso aproximou-se.

- O Biruta, doutor...

O homem voltou-se ligeiramente. Baixou os olhos.

- Está bem, está bem. Pode deixá-lo ai atrás.

Alonso ainda beijou furtivamente o focinho do cachorro. Em seguida, fêz·lhe uma última carícia, colocou-o no assento do automóvel e afastou-se correndo.

- Biruta vai adorar a festa! - exclamou assim que entrou na cozinha. - E lá tem doces, tem crianças, ele não quer outra coisa! - Fez uma pausa. Sentou-se. - Hoje tem festa em teda parte, não, Leduina?

A mulher já se preparava para sair.

- Decerto.

Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.

- Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?

- Não, menino. Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é

que aquele rei manda prender os três.

Alonso concentrou-se, apreensivo:

- Sabe, Leduina, se algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia com ele no meio do mato e ficava morando lá a vida inteira, só nós dois!... - Riu-se metendo uma batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruido do carro que já saia. - Dona Zulu estava linda, não?

- Estava.

- E tão boazinha também. Você não achou que hoje ela estava boazinha?

- Estava, estava muito boazinha, sim... - concordou a empregada. E riu-se.

- Por que você está rindo?

- Nada - respondeu ela pegando a sacola. Dirigiu-se à porta. Mas antes, parecia querer dizer qualquer coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.

Alonso observou-a. E julgou adivinhar o que a preocupava.

- Sabe, Leduína, você não precisa dizer para Dona Zulu que ele mordeu sua carteirinha, eu já falei com ele, já surrei ele, ele não vai fazer mais isso nunca mais, eu prometo que não.

A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez encarou-o. E após vacilar ainda um instante, decidiu-se:

- Olha aqui, se êles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu para você, Biruta não vai mais voltar.

- Não vai o quê? - perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca e levantou-se. - Não vai o quê, Leduína?

- Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava a louça, escutei toda a conversa dela com o doutor: que não queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais aquilo... O doutor pediu para ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia sentir muito, hoje era Natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.

Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca.

A voz era um sopro quase inaudível:

- Não? ..

Ela perturbou-se.

- Que gente também! - explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. - Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar...

Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu­se à garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz do luar, uma luz branca e fria, chegava até a borda do colchão desmantelado.

Alonso cravou os olhos brilhantes e secos num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou­se. E estendeu a mão tateante. Tirou debaixo do travesseiro uma bola de borracha.

- Biruta - chamou baixinho. - Biruta... - repetiu. E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.

Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel, segurando a bola.

Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração.

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Conto extraído de: TELLES, Lygia Fagundes. Histórias escolhidas. São Paulo: Boa Leitura Editora, 1961.


domingo, agosto 14, 2011

" ...acabou pensando nela como jamais imaginara que se pudesse pensar em alguém, presentindo-a onde não estava, desejando-a onde não podia estar, acordando de súbito com a sensação física de que ela o contemplava na escuridão enquanto ele dormia... de maneira que na tarde em que sentiu seus passos resolutos no tapete de folhas amarelas da pracinha custou a crer que não fosse outro embuste da sua fantasia. "

sábado, agosto 13, 2011

"Penso sempre que um dia a gente vai se encontrar de novo, e que então tudo vai ser mais claro, que não vai mais haver medo nem coisas falsas. Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei a fugir. (...) eu só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha — e tenho — pra você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim."

quinta-feira, agosto 11, 2011

"Todas as vezes que você deseja sumir, é quando você mais precisa que alguém te veja."

segunda-feira, agosto 08, 2011

Existe algo próximo à perfeição?

"Eu a amo, de corpo e alma. Ela é tudo para mim. E no entanto não se parece em nada com as mulheres sonhadas, aquelas criaturas ideais que eu adorava quando menino. Não corresponde a nada que eu tenha concebido na profundeza de meu ser. É uma imagem totalmente nova, algo estranho, algo que o Destino roubou de alguma esfera desconhecida para lançar no meu caminho. Olhando para ela, amando-a pedacinho por pedacinho, verifico que a sua totalidade me escapa. Meu amor se acrescenta como uma soma, mas ela, a mulher que procuro com um amor desesperado e faminto, me escapa como um elixir. É completamente minha, de uma maneira quase servil, mas eu não a possuo. Eu é que sou possuído. Sou possuído por um amor que nunca antes se tinha oferecido a mim: um amor absorvente, amor total, amor até as unhas do pé e a sujeira debaixo delas - e, no entanto, minhas mãos estão sempre esvoaçando, sempre procurando agarrar e segurar, aprisionando o vácuo."

HENRY MILLER

(FÓDA)

Henry Miller

Pessoas sensíveis, pessoas que sentem, querem se unir de uma maneira mais profunda, mais sutil, mais durável do que é permitido pelo costume e pelas convenções. Quero dizer, segundo maneiras além dos sonhos dos utopistas sociais e políticos. A fraternidade entre os homens, caso chegasse a se concretizar um dia, é apenas o jardim de infância do drama das relações humanas. Quando o homem começa a se permitir a plena expressão, quando é capaz de se expressar sem temer o ridículo, o ostracismo ou a perseguição, a primeira coisa que faz é extravasar o seu amor. Na história do amor humano, ainda estamos no primeiro capítulo. Ainda ali, ainda no domínio puramente pessoal, a coisa é bastante precária. Temos mais de uma dúzia de heróis e heroínas para apresentar como exemplos? Duvido mesmo que tenhamos tantos grandes amantes quantos santos ilustres. Temos pilhas de eruditos, de reis e imperadores, de estadistas e chefes militares, artistas em profusão, inventores, descobridores, exploradores — mas onde estão os grandes amantes? Após um momento de reflexão, voltamos a Abelardo e Heloísa, ou a Antônia e Cleópatra, ou à história do Taj Mahal. Boa parte dessas histórias é fictícia, engrandecida e glorificada por amantes pobres cujas preces só são respondidas pelo mito e lenda.

Pag. 58 - Sexus

“Hoje sinto orgulho que dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que nada tenho a ver com a maquinaria rangente da humanidade – eu pertenço à terra! (...)
Lado a lado com a espécie humana corre outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, incitados por desconhecidos impulsos, tomam a massa sem vida da humanidade e, pela febre e pelo fermento com que a impregnam, transformam a massa úmida em pão, e pão em vinho, e o vinho em canção. Do composto morto e da escória inerte criam uma canção que contagia. Vejo esta outra raça de indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo de cabeça pra baixo, e os pés sempre se movendo em sangue e lágrima, as mãos sempre vazias, sempre se estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus inatingível: matando tudo ao seu alcance a fim de acalmar o monstro que lhe corrói as entranhas. (...) E tudo quanto fique aquém desse aterrorizador espetáculo, tudo quanto seja menos sobressaltante, menos terrificante, menos louco, menos delirante, menos contagiante, não é arte. Esse resto é falsificação. Esse resto é humano. Pertence a vida e à ausência de vida.
(...) Se sou inumano é porque meu mundo transbordou de suas fronteiras humanas, porque ser humano parece uma coisa pobre, triste, miseravel, limitada pelos sentidos, restringidas pelas moralidades e pelos códigos, definida pelos lugares-comuns e ismos.
(...) Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucuras, um mundo que produza êxtase e não peidos secos.
(...) Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós os vivos, à beira da cratera, uma última e agonizante dança. Mas que seja uma dança !”

Henry Miller “Trópico de Câncer”

No Por Enquanto saltamos as poças d’aguas. Quem se deu ao luxo de entregar ao menor vento que soprasse, tranqüilo iria caminhando sobre um chão de estrelas.
O por enquanto é tudo quanto somos e - nesses caminhos - muitas vezes tortuosos, em que a terra inteira abre os braços, as vezes chove, as vezes faz sol. E por enquanto, esperamos que o sol apareça e queime tudo que há para queimar.
E as poças, inda que compatíveis aos sapatos velhos, conseguem refletir as estrelas.
Olho e fumo demoradamente,como se cada pedaço acima ou tão longe fossem parte do que sinto...

se há o tal deuz,se há aquela força que tudo move , eu abaixo a cabeça e agradeço... por ainda não ter jogado estrelas nesse caminho...

" Sim, eu sou um homem e choro. Um homem não tem olhos? Não tem também mãos, sentidos, inclinações, paixões? Porque é que um homem não devia chorar? "

A. Strindberg

sábado, agosto 06, 2011

L.F.T

"-Você sabia, Ana? Algumas estrelas são leves assim como o ar, a gente pode carrega-las numa maleta. Uma bagagem de estrelas. Já pensou no espanto do homem que fosse roubar essa maleta? Ficaria para sempre com as mãos cintilantes, mas tão cintilantes que não poderia mais tirar as luvas."

[Lua Crescente em Amsterdã]

sexta-feira, agosto 05, 2011

O mal maior foi não estar nunca presente, não ver de perto as coisas que assim de longe se fantasiavam como num sortilégio. Teria visto tudo com simplicidade, sem sofrimento. Mas mil vezes se desdobrara em duas para deixar que uma das menininhas corresse por ali enquanto a outra roía as unhas, rondando na ponta dos pés o quarto da doente. E aquela que fugia, voltava depois contando coisas extraordinárias... (...) Os semideuses eram apenas cinco criaturas dolorosamente humanas

Lygia Fagundes

"É preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas da vida. A música. Este céu que nem promete chuva. Aquela estrelinha nascendo ali... está vendo aquela estrelinha? Há milênios não tem feito nada, não guiou os reis magos, nem os pastores, nem os marinheiros perdidos... apenas brilha. Ninguém repara nela porque é uma estrela inútil. Pois é preciso amar o inútil porque no inútil está a beleza. No inútil também está Deus. "

SONETO XVII - Neruda

"No te amo como si fueras rosa de sal, topacio
o flecha de claveles que propagan el fuego:
te amo como se aman ciertas cosas oscuras,
secretamente, entre la sombra y el alma.

Te amo como la planta que no florece y lleva
dentro de sí, escondida, la luz de aquellas flores,
y gracias a tu amor vive oscuro en mi cuerpo
el apretado aroma que ascendió de la tierra.

Te amo sin saber cómo, ni cuándo, ni de dónde,
te amo directamente sin problemas ni orgullo:
así te amo porque no sé amar de otra manera,

sino así de este modo en que no soy ni eres,
tan cerca que tu mano sobre mi pecho es mía,
tan cerca que se cierran tus ojos con mi sueño."

"Há bastante deslealdade, ódio, violência, absurdo no ser humano comum para suprir qualquer exército em qualquer dia. E o melhor no assassinato são aqueles que pregam contra ele. E o melhor no ódio são aqueles que pregam amor, e o melhor na guerra, são aqueles que pregam a paz. Aqueles que pregam Deus precisam de Deus, aqueles que pregam paz não têm paz, aqueles que pregam amor não têm amor. Cuidado com os pregadores, cuidado com os sabedores. Cuidado com aqueles que estão sempre lendo livros. Cuidado com aqueles que detestam pobreza ou que são orgulhosos dela. Cuidado com aqueles que elogiam fácil, porque eles precisam de elogios de volta. Cuidado com aqueles que censuram fácil, eles têm medo daquilo que não conhecem. Cuidado com aqueles que procuram constantes multidões, eles não são nada sozinhos. Cuidado com o homem comum, com a mulher comum, cuidado com o amor deles. O amor deles é comum, procura o comum, mas há genialidade em seu ódio, há bastante genialidade em seu ódio para matar você, para matar qualquer um. Sem esperar solidão, sem entender solidão eles tentarão destruir qualquer coisa que seja diferente deles mesmos."

"Gostava mais quando conseguia imaginar grandeza nos outros, mesmo que nem sempre houvesse."

Bukowski.

quarta-feira, agosto 03, 2011

Gabriel Garcia Marques

"Meu Deus, se eu tivesse um pouco de vida... Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas. Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo amor. Aos homens provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar! A uma criança, dar-lhe-ia asas, mas teria que aprender a voar sozinha. Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento. "

- carta de despedida

terça-feira, agosto 02, 2011

"O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem".

João Guimarães Rosa