Domingo - caio fernando
Domingo
Sobre a mesinha, ao lado da pilha de livros, o cinzeiro cheio de resíduos, bolinhas de papel, pontas de cigarro.
Recostado na mesa, o corpo, na ponta do corpo a mão, na ponta da mão os dedos avançando até o maço. Vazio. Revira o cinzeiro, um peso na cabeça, escolhe a ponta maior. Um último palito de fósforo na caixa. A chama. Azulada. Traga lento, depois solta a fumaça pela boca num jato, fica olhando o fio longo sugado pelo vento da janela aberta. Pela janela aberta, o silêncio do domingo impresso num céu sem cor. Na rua deserta de rumores: domingo. Abre um livro. Os dedos circundam as letras, a unha do indicador amarelada pelo fumo, os dedos acariciam as letras como se fossem carne. Carne desconhecida, sem interesse. Um pouco fria. Letras que não dizem nada, gesto cansado, dedos que voltam à posição anterior mas, inquietos, sobem pela camisa, libertam o último botão da calça. Dedos que entram no peito, passam na pele, alcançando o pescoço, o rosto onde a barba não feita fere de leve. De um apartamento ao lado o vento rouba uma música do rádio e a traz para junto de seus ouvidos. Um samba. Gosto desse samba, pensa distraído, liga o rádio, coincidência, exatinho na mesma estação, dedos agora acompanham o ritmo batendo na colcha, mas o pano não faz som, é preciso bater na mesinha, madeira sambando, a melodia escorrega devagar pelo lado do cinzeiro, se espalha no chão. A voz acompanha baixinho a letra melancólica, amor, flor. Esmaga a ponta do cigarro na parede, atira-se sobre o assoalho, a mãe vai reclamar, nunca viu tanto relaxamento nem tanta preguiça num corpo só.
Dezoito anos e um metro e oitenta de solidão. Desliza a mão pela parede, fechando os olhos o verde deixa de ferir, as granulações miúdas do cimento parecem prometer alguma coisa, Mexe os pés sem meias de encontro à colcha, a consistência fria, um pouco viscosa, coloca arrepios na pele. Abre os olhos e encontra o verde da parede, o azul da colcha: domingo espreitando na moldura da janela. Reduzido a ele mesmo, miseravelmente, sobre a cama. Nem sono tem. Já fechou os olhos, tentou dormir mas tanta preguiça que nem sono tem. Apaga o rádio. Detesto tango argentino, nem sabe se é argentino, pode ser até brasileiro, sueco ou esquimó mas fala em navalhada, cabaré & traição, mulher de cabelo tingido, talho na saia preta mostrando a coxa, piteira, pálpebras machucadas: tango. Coisa mais cafona. A indolência aumenta com a mudez do rádio. Gosto daqueles sambas mais antigos, a batida leve, mansinho, a voz fraca do cantor dizendo bem baixinho coisas bonitas e tristes. Ou então guitarras amplificador cabelos crespos berros brilhos oh yeah! No canto do quarto, o toca-discos: uma possibilidade, Mas seria preciso levantar, escolher o disco, passar lentamente o feltro, colocá-lo no prato, apertar um botão, dois botões, aumentar o volume, diminuir o volume. Ouvir. Deitar de novo, fechar os olhos, corpo abandonado na maciez da cama, lembrança chegando, de qualquer coisa, de preferência bem enfossante, quanto mais melhor. Obrigação de sentir, se possível, chorar. Larga de novo o corpo sobre as cobertas, que merda essa carteira de cigarros vazia, podia levantar, ir até a sala, a pedir ao noivo da irmã, um saco, descer até o bar, encontrar os carinhas pelo caminho, com o violão, na certa, sentados sobre o motor do fusca, não sei como o pobre agüenta aquela porção de bundões em cima dele, como é, vamos dar uma volta? Não quero, estou na fossa. Ou não dizer nada, são uns animais, não iriam entender, perguntariam por que, ela te chutou? não iriam entender que vezenquando a gente fica triste sem motivo, ou pior ainda, sem saber sequer se está mesmo triste. Mas podia aceitar, entrar no carro, vamos até à praia? deitar a cabeça nos braços, apoiar os braços na janela aberta, vento entrando, remexendo nos cabelos, no rosto, jeito de lágrima querendo rolar.
A réstea de sol encolhe no chão: tempo. Só esse sol sem cor neste dia sem cor nem jeito de domingo. Idiotice: por que domingo precisa ter um jeito especial, mania de esperar que as coisas sejam de um jeito determinado, por isso a gente se decepciona e sofre. Na mesa, os livros oferecem consolo. Vontade de ler um troço decente. Mas é preciso passar por um porção de besteiras até chegar ao que interessa. Vontade de ter um pensamento bem profundo, desses que fazem a gente se surpreender que tenham saído da nossa cabeça mesmo, naquela modéstia que só se tem quando se está distraído — desses pensamentos que nas revistas em quadrinhos aparecem em forma de lâmpada sobre a cabeça do cara. Mas o quê? Sobre a vida, um combate que aos fracos abate e aos fortes e aos bravos só pode exaltar? Sobre o amor, que é isso que você está vendo hoje beija amanhã não beija depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será? Ou sobre a cultura e a civilização, elas que se danem ou não contanto que me deixem ficar na minha? Tudo já foi pensado: vida, amor, cultura, civilização, liberdade, anticoncepcionais, comunismo, esterilização na Amazônia, exploração das potências estrangeiras, mais que nunca é preciso cantar, guerra fria e vem quente que eu estou fervendo. Tudo na mesma merda. Pudesse abrir a cabeça, tirar tudo para fora, arrumar direitinho como quem arruma uma gaveta. Tomar um banho de chuveiro por dentro.
Em um metro e oitenta, dezoito anos, e em dezoito anos, seis meses, quatro dias, dezesseis horas e vinte minutos (em breve vinte e um). Nesse amontoado de características, sessenta quilos de magreza e solidão. Encosta o corpo na cama, a mão passando de leve no xadrez do cobertor dobrado a seus pés, o rosto na parede que o acolhe com o sem compromisso de sua impessoalidade, a mão passa sobe desce e de leve, de leve começa a chorar.
(ABREU, Caio Fernando. O inventário do ir-remediável.)
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial