sábado, novembro 04, 2006

Dispersos - Caio Fernando Abreu

Dispersos

Teu ego é minha base
Meu ego é teu destino
Meu destino é o teu outro
Teu destino é o meu ego
Teu outro é o meu destino
Tua base é o meu outro
Meu outro é a tua base
- Por tudo simplesmente
Não compreendo por quê: não.
Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer?
Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que cada vez aumenta ainda mais a minha necessidade de ti. Torna-se desesperada, urgente. Eu já não sei o que faço. Não sinto nenhuma outra alegria além de ti.
Como pude cair assim nesse fundo de poço? Quando foi que me desequilibrei? Não quero me afogar: Quero beber tua água. Não te negues, minha sede é clara.
Ex-pedir
Pedidos de socorro
Em todas as direções
Postado à janela
o laço na mão
ex-pirar
por dentro, inútil
medo em branco
examinando possibilidades
as mais diversas
de escape que não há
A natureza se esmera em reunir no corpo dele todos aqueles traços de beleza dispersos irregularmente pelos outros membros da família. Conjugava, assim, os cabelos pretos e lisos do pai aos olhos claros da mãe, o jeito lento de uma tia-avó ao nariz aquilino da rima, mais o corpo bem-feito de um primo aos dentes de uma sobrinha, e por aí afora. Tudo isso de maneira tão ostensiva que, em ocasiões como natal, ano-novo ou páscoa (sobretudo nas fotografias posteriores), ele sobressaía tanto que os outros parentes podiam esquivar-se a um movimento de inveja, cópias imperfeitas de um original impecável.
Não cantes como eu,
Os outros por bebedeira
Não saúdes
A morte em literatura
Boa negra
Voltada para as estrelas
Pés de chumbo
Cravados na lama:
O canhão
E sua escandalosa metafísica
E agora?
Três, quatro anos depois
Cadê você?
Cadê a grande mutação?
Pintaram as rebordosas. Continuaram pintando. Nós continuávamos resistindo mas às vezes penso que viver não deve ser apenas isso, segurar a barra.
Continuamos carregando nossas pequenas maldições – mais orgasmos, insônia, pesadelos, excessos de álcool e cigarros, procura cega, iluminações ilusórias e passageiras, etc. O mundo continua apodrecendo, os amigos vão para a Europa, para a clínica ou para a prisão, viciaram-se nas drogas mais diversas. Em nome de que resistimos? De onde tiramos essa energia, que é meio talvez uma falta de energia por não termos conseguido radicalizar e mudar alguém ou a nós próprios, ou enlouquecer e fugir pro mato. Normalmente resistimos enquanto o coração resseca, os olhos endurecem, as deliberações se frustram.
Desmascaramos a farsa para continuarmos a existir no meio dela. De que nos tem servido essa lucidez senão para chamar barra cada vez mais pesada?
Batalhamos a paz, a divina diferença. Pra termos sede de amor e de beleza.
(estou sem dinheiro no verão, baixa o astral de qualquer um)
Com ou sem nova convivência, somos profundamente infelizes. Nosso saldo é o desencanto. E você, onde andará?
(Dispersos - Caio 3D O Essencial da Década de 1980)

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