domingo, dezembro 24, 2006

O inventário do ir-remediável - Caio Fernando

De O Inventário do Ir-remediável.

Eu não tenho culpa. Não fui eu quem fez as coisas ficarem assim desse jeito que não entendo ,que não entenderia nunca. Você também não tem culpa, vou chamá-lo de você porque nin-guém nunca ficará sabendo, nem era preciso, a culpa é de todos e não é de ninguém. Não sei quem foi que fez o mundo assim horrível às vezes quando ainda valia a pena eu ficava horas pensando que podia voltar tudo a ser como antes muito antes dos edifícios dos bancos da fuligem dos automóveis das fábricas das letras de câmbio e então quem sabe podia tudo ser de outra forma depois de pensar nisso eu ficava alegre quem sabe quem sabe um dia aconte-ceria mas depois pensava também que não ia adiantar nada e tudo começaria a ficar igual de novo no momento que um homem qualquer resolvesse trocar duas pedras por um pedaço de madeira porque a madeira valia mais e de repente outra vez iam existir essas coisas duras que vejo da janela na televisão no cinema na rua em mim mesmo e que eu ia como sempre sair caminhando sem saber aonde ir sem saber onde parar onde pôr as mãos os olhos e ia me dar aquela coisa escura no coração e eu ia chorar chorar durante muito tempo sem nin-guém ver é verdade tenho pena de mim e sou fraco nunca antes uma coisa nem ninguém me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora mas ao menos nesse agora eu quero ser como eu sou e como nunca fui e nunca seria se continuasse me entende eu não conseguiria não você não me entendeu nem entende nem entenderia você nem sequer soube sabe saberá amanhã você vai ler esta carta e nem vai saber que você poderia ser você mesmo e ainda que soubesse você não poderia fazer nada nem ninguém eu já não acredito nessas coisas por isso eu não te disse compreende talvez se eu não tivesse visto de repente o que vi não sei no mo-mento em que a gente vê uma coisa ela se torna irreversível inconfundível porque há um mo-mento do irremediável como existem os momentos anteriores de passar adiante tentando arrancar o espinho da carne...
carne há o momento em que o irremediável se torna tangível eu sei disso não queria demonstrar que li algumas coisas e até aprendi a lidar um pouco com as palavras apesar de que a gente nunca aprende mas aprende dentro dos limites do possível acho não quero me valorizar não sou nada e agora sei disso eu só queria ter tido uma vida completa elas eram horríveis mas não quero falar nisso podia falar de quando te vi pela primeira vez sem jeito de repente te vi assim como se não fosse ver nunca mais e seria bom que eu não tivesse visto nunca mais porque de repente vi outra vez e outra e outra e enquanto eu te via nascia um jardim nas minhas faces não me importo de ser vulgar não me importa o lugar-comum dizer o que outros já disseram não tenho mais nada a resguardar um momento à beira de não ser eu não sou mais tudo se revelou tão inútil à medida em que o tempo passava tudo caía num espaço enorme amar esse espaço enorme entre mim e você mas não se culpe deixa eu falar como se você não soubesse não se culpe por favor não se culpe ainda que esse som na campainha fosse gerada pelos teus dedos eu não atenderia eu me recuso a ser salvo e é tão estranho o entorpecimento começa pelos pés aquela noite eu ainda esperava quase digo sem querer teu nome digo ou escrevo não tem importância vou escrevendo e falando ao mesmo tempo com o gravador ligado é estranho me desculpa saí correndo no parque e me joguei na água gelada de agosto invadi sem ter direito a névoa dos canteiros destaquei meu corpo contra a madrugada esmaguei flores não nascidas apertei meu peito na laje fria do cimento a névoa e eu o parque e eu a madrugada e eu costurado na noite cerzido no escuro porque me dissolvia à medida em que me integrava no ser do parque e me desintegrava de mim mesmo preenchendo espaços aqueles enormes es'paços brancos terrivelmente brancos e você não teve olhos para ver que o parque era você a água você a névoa você a madrugada você as flores você os canteiros você o cimento você não teve mãos para mim só aquela ternura distraída a mesma..
dos edifícios e das ruas mas eles me desesperavam você me desesperava eu não quero falar nelas mas elas estão na minha cabeça como os meus cabelos e as vejo a todo instante cantando aquela canção de morte a minha carne dilacerada e eu ridículo queria ter uma vida completa você não se parecia com Denise tinha os olhos de mangaba madura os mesmos que tive um dia e perdi não sei onde não sei por que e de repente voltavam em você nos cabelos finos muito finos finos como cabelos finos 'minto que me bastaria tocá-los para que tudo fosse outra vez mas não toquei eu não tocaria nunca na carne viva e livre eles me rotularam me analisaram jogaram mil complexos em cima de mim problemas introjeções fugas neuroses recalques traumas e eu só queria uma coisa limpa verde como uma folha de malva aquela mesmo que existiu ao lado do telhado carcomido do poço e da paineira mas onde me buscava só havia sombra eu me julgava demoníaco mas não pense que estou disfarçando e pensando como-eu-sou-bonzinho-porque-ninguém-me-ama eu me achava envilecido me sentia sórdido humilhado uma faixa de treva crescia em mim feito um câncer a minha carne lacerada estou dentro dessa carne lacerada que anda e fala inútil a carne conjunta das xifópagas e o vento um vento que batia nos ciprestes e me levava embora por sobre os te-lhados as cisternas as varandas os sobrados os porões os jardins o campo o campo e o lago e a fazenda e o mar eu quero me chamar Mar você dizia e ria e ríamos porque era absurdo alguém querer se chamar Mar ah mar amar e você dizia coisas tolas como quando o vento bater no trigo te lembrarás da cor dos meus cabelos...
cabelos você não vai muito além desses príncipes pequenos suas palavras todas não tenho culpa não tenho culpa eram de quem pedia cativa-me eu já não conseguiria bem lento eu não conseguiria eu não sei mais inventar. a não ser coisas sangrentas como esta a minha maneira de ser um momento à beira de não mais ser não me permite um invento que seja apenas um entrecaminho para um outro e outro invento mesmo a destruição tem que ser final e inteira qualquer coisa tem que ser a última uma era inteira e a outra nascia da cintura e existia só da cintura para cima como um ipsilone mole esponjosa uma carne vil uma carne preparada por toda uma estrutura de guerras epidemias pestes ódios quedas eu me sentia culpado ao vê-Ias assim nosso podre sangue a humanidade inteira nelas que não riam e cantavam aquela sombria canção de morte brutalmente doce elas cantavam e minhas costas doíam como se eu sozinho as sustentasse e não uma à outra mas eu eu com este sangue apodrecido que assassina crianças de fome droga adolescentes bombardeia cidades e também você e todos nós grudados indissoluvelmente grudados nojentos mas me recuso a continuar ninguém sofrerá por mim sem mim chorar ninguém entende nem precisa nem você nem eu o anel que tu me deste sobre a folha que me contém sem compreender sem compreender que você carrega toda uma culpa milenar e imperdoável a História como concreto sobre os teusmeusnossos ombros Cristo sobre nossos ombros todas as cruzes do mundo e as fogueiras da inquisição e os judeus mortos e as torturas e as juntas militares e a prostituição e doenças e bares e drogas e rios podres e todos os loucos bêbados suicidas desesperados sobre os teus meus nossos ombros leves os teus porque não sabes sim sim eu tenho culpa não é de ninguém esse desgosto de lâmina nas entranhas não é de ninguém esse sangue espantado e esse cosmos incompreensível sobre nossas cabeças não posso ser salvo por ninguém vivo e os mortos não existem a fita está acabando começo a ficar tonto a dormência chegou...

quem sabe ao coração talvez eu pudesse eu soubesse eu devesse eu quisesse quem sabe mas não chore nem compreenda te digo enfim que o silêncio e o que sobra sempré como em García Lorca solo resta el silêncio un ondulado silêncio os espaço de tempo a nos situar fragmentados no tempoespaçoagora não sei onde fiquei onde estive onde andei nada compreendi desta travessia cega a mesma névoa do parque outra vez a mesma dor de não ser visto elas gritam sua canção de morte este sangue nojento escorrendo dos meus pulsos sobre a cama o assoalho os lençóis a sacada a rua a cidade os trilhos o trigo as estradas o mar o mundo o espaço os astronautas navegando por meu sangue em direção a Netuno e rindo não não quebres nunca os teus invólucros as tuas formas passaLentamente a mão do anel que eu te dei e era vidro depois ri ri muito ri bêbado ri louco ri ate te surpreenderes com a tua não dor até te surpreenderes com não me ver nunca mais e com a desimportancia absoluta de não me ver nunca mais e com minha mão nos teus cabelos dis-tante invisível intocada no ventoPerdida a minha mão de espuma abrindo de leve esta porta assim.

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

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8:28 AM

 
Blogger IRGS; disse...

lindo :D

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2:44 PM

 

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